PNE completa um ano, mas precisa sair do papel
Daniel Cara
O Plano Nacional de Educação completa hoje seu primeiro ano de vigência. A expectativa sobre o cumprimento de seus dispositivos permanece alta. Basicamente, o PNE pretende ser um primeiro e decisivo passo para que o Brasil resolva sua extensa dívida educacional. Mas é preciso encarar a realidade: mesmo se forem considerados todos os esforços empreendidos, nesse primeiro ano de vigência da Lei 13.005/2014, pouco foi feito. Em outras palavras, o que foi realizado até aqui é insuficiente.
O PNE deve ser compreendido como um patrimônio da sociedade brasileira. Não pertence a nenhum governo ou partido. Sua tramitação foi marcada por uma intensa interlocução entre sociedade civil, parlamentares e governantes. Afora a equivocada contabilização de parcerias público-privadas no investimento público em educação e a lamentável extração de instrumentos para o combate às discriminações de gênero, raça e etnia e orientação sexual nas escolas, quase tudo que está inscrito na Lei é fruto de consenso.
Diante de toda essa legitimidade, o cumprimento do PNE não deveria ser tão penoso. No entanto, não é o que acontece. Sancionado em 25 de junho do ano passado, sem qualquer cerimônia oficial, o plano ainda não recebeu a centralidade necessária.
Os primeiros meses de vigência do PNE coincidiram com o calendário eleitoral de 2014. Finalizadas as eleições, a preocupação da maior parte dos gestores públicos recaiu sobre a composição dos governos, em especial do governo federal.
O início do primeiro semestre de 2015 trouxe esperança. Na cerimônia de posse, Dilma Rousseff anunciou que o lema da sua segunda gestão seria “Brasil: pátria educadora”. No entanto, a própria presidenta passou meses sem sequer mencionar o PNE em seus discursos. Na sequência, o Ministro Roberto Mangabeira Unger lançou o documento “Pátria educadora: a qualificação do ensino básico como obra de construção nacional”, recebendo quase toda a atenção do debate educacional. O cumprimento do PNE foi secundarizado.
O tempo passou. Durante o primeiro ano de vigência do plano o país já contou com três ministros da educação: José Henrique Paim Fernandes, Cid Ferreira Gomes e Renato Janine Ribeiro. Até o momento, nem o essencial não foi feito. Não foi desencadeado sequer um processo de definição dos indicadores para avaliar o cumprimento dos dispositivos do PNE, tampouco foi divulgada uma linha de base oficial do plano – um relatório dedicado a oficializar o ponto de partida do Brasil no PNE, considerando cada uma das metas e suas estratégias. Sem qualquer referência acordada – e ela precisa ser acordada! –, fica ainda mais evidente o descumprimento dos dispositivos.
O maior esforço empreendido até aqui recaiu sobre a elaboração dos planos estaduais, municipais e do Distrito Federal. Os planos subnacionais são fatores essenciais para o sucesso do PNE. Porém, outros dispositivos e obrigações nem sequer chegaram a ser discutidos, como a elevação da taxa de alfabetização da população com mais de 15 anos para 93,5% (meta 9) ou o estabelecimento da política nacional de formação dos profissionais da educação (meta 15) – em que pese o profícuo trabalho realizado pelo Conselho Nacional de Educação no tocante às diretrizes de formação de profissionais do magistério.
Hoje o Ministério da Educação deve anunciar a instalação de comissões e instâncias para tarefas determinadas no PNE. Para começar, três perguntas devem ser feitas: 1) Por que apenas agora? 2) Quem integrará as comissões? 3) Qual foi o processo de articulação para constituí-las? Espero que o atraso no estabelecimento desses coletivos não seja tributário daquela velha máxima da administração pública: se quer protelar algo sem resolvê-lo, crie um grupo de trabalho pouco antes do encerramento de um prazo.
O PNE foi construído a muitas mãos e para ter sucesso precisará dessas e de muitas outras. O conteúdo de sua implementação não pode ser definido em gabinetes, a portas fechadas, como tem acontecido até aqui. Até porque isso não funciona.
O Ministro Roberto Mangabeira Unger tem afirmado que a tradição do Estado brasileiro é se encastelar, não ouvir sugestões ou críticas, com o receio de alimentar oposições. Segundo ele, isso impede o fortalecimento democrático do país e das próprias políticas públicas. Concordo com Mangabeira, mas é isso que ocorre com o PNE: setores do Ministério da Educação trancafiaram o plano.
Em seu discurso de posse, o Ministro Renato Janine Ribeiro argumentou que o Brasil teve êxito em três etapas para construção de sua democracia: superação da ditadura, superação da inflação e promoção da inclusão social – segundo ele, esta última demanda ainda está inconclusa. Segundo Janine Ribeiro, a partir das jornadas de junho de 2013, ficou evidente uma quarta agenda democrática: a da qualidade dos serviços públicos.
Utilizando os termos do Ministro, é correto considerar que o PNE representa a articulação das duas últimas agendas na educação: promoção da inclusão social e busca pela qualidade da educação pública. Mas para vingar o plano depende de gestão democrática (em todas suas etapas) e prioridade orçamentária – o que tem sido impossibilitado pela incorreta política de ajuste fiscal, criticada recentemente pelo ex-presidente Lula e inúmeros economistas.
Dois manifestos recentes reiteram o que está escrito aqui. O primeiro é a Carta do XV Fórum da União dos Dirigentes Municipais da Educação (Undime). Aclamada por todos os secretários presentes, o texto seria até mais incisivo se não houvesse a cuidadosa mediação da diretoria da Undime.
O segundo documento é o posicionamento público da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, intitulado “Uma pátria educadora deve tirar o PNE do papel: primeiros prazos do plano estão sendo descumpridos”. O texto é assinado pelas 11 entidades e movimentos sociais que compõe o Comitê Diretivo da rede.
O que há de comum nos dois textos é a vontade de tornar efetivo o PNE. Eles manifestam o que é necessário ser dito ao Ministério da Educação. Mas, além disso, as duas cartas expressam também a vontade de seus signatários de participar da resolução dos problemas. Cabe agora ao MEC decidir se quer ou não abrir o debate em torno da principal lei aprovada nos últimos anos. Há apenas uma certeza: a comunidade educacional permanecerá cobrando o cumprimento do plano e exigindo participar ativamente de sua implementação. Governos passam, a sociedade fica e as leis precisam ser cumpridas, sem tergiversação. O que está em jogo são milhões de brasileiros fora da escola. E muitos outros milhões que estão dentro da escola, mas sem aprender. O PNE precisa sair do papel!