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#BNCC: O que Paulo Freire e Anísio Teixeira diriam sobre a base curricular?
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Daniel Cara

Construído por um processo de participação fantasioso, ignorando a pedagogia e pautado pelo obscurantismo, o documento curricular de Michel Temer servirá, no final, apenas para submeter as professoras e os professores a processos de controle

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) da educação infantil e do ensino fundamental foi homologada no dia 20/12 no Palácio do Planalto. Embora o texto tenha começado a ser debatido durante o governo Dilma Rousseff, o produto final não permite dúvida: o currículo homologado no Palácio do Planalto expressa a visão de educação do governo Michel Temer.

O governo Temer é fruto de uma aliança ultra, articulada entre ultraliberais e ultraconservadores. Representando os interesses do mercado financeiro, os ultraliberais ditam o programa de governo, advogando – essencialmente – que a Constituição Federal não cabe no orçamento público. Por decorrência lógica, para eles, o povo brasileiro não cabe no orçamento público. Um pressuposto absurdo e inaceitável, mas em vigor no país desde a promulgação da Emenda à Constituição 95/2016 – que congelou por 20 anos os gastos púbicos federais em educação, saúde e assistência social; e todas as demais áreas. Além dessa alteração constitucional, o ultraliberalismo de Temer impôs ao país a reforma trabalhista, a venda de ativos nacionais a preços irrisórios, o processo de desconstrução do controle nacional sobre a exploração de petróleo e gás natural, a evasão tributária às petroleiras e a reforma do ensino médio. Há ainda a tentativa de reformar a previdência social.

Já os ultraconservadores desejam impor uma composição de sociedade pautada por uma concepção desatualizada de família, orientada pelo predomínio machista do homem sobre a mulher e pela exclusão das identidades de gênero e de orientação sexual que diferem da heterossexualidade. Ou seja, defendem posições que agridem os valores mais básicos expressos na Constituição Federal de 1988 e na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, divergindo, portanto, do pressuposto mínimo de respeito ao próximo.

Infelizmente, a Base Nacional Comum Curricular de Michel Temer é filha legítima dessas duas correntes ideológicas, aliançadas no Brasil desde o processo de impeachment de Dilma Rousseff.

Uma base curricular condizente com a austeridade econômica

Relatada no Conselho Nacional de Educação por José Francisco Soares e Joaquim José Neto Soares, dois especialistas em avaliação de larga escala e ex-presidentes do Inep – autarquia que, infelizmente, tem sido reduzida à aplicação de testes padronizados –, a BNCC será mais útil para o exercício de um controle antipedagógico do trabalho docente, do que para dar apoio e subsídios ao trabalho das educadoras e dos educadores.

A base curricular praticamente recria a experiência de séries no ensino fundamental, conflitando com a lógica pedagogicamente mais avançada de ciclos. Orientada por supostos direitos de aprendizagem, a BNCC reduz o trabalho pedagógico dos professores com os alunos a uma lista de conteúdos que devem ser cumpridos e (equivocadamente) transmitidos, tornando o processo de ensino-aprendizagem mimético, irrefletido e irrealizável.

Professores com boa formação serão capazes de superar a BNCC, mas – no início – educadores com déficit formativo serão pressionados a se submeter a ela, sendo impelidos a seguir à risca o instrumento curricular que será tomado como uma mera receita. Se isso funcionasse, o que obviamente não é o caso, os estudantes poderiam ser ensinados eficientemente por máquinas e não por seres humanos.

Na História, algumas coincidências parecem ir além do acaso. Aprovada em 15/12 no Conselho Nacional de Educação, no mesmo dia em que a Emenda à Constituição 95/2016 completou um ano de vida, a base curricular de Temer é o projeto educacional que cabe dentro da política de austeridade econômica desse governo. Não se trata de interpretação. É o próprio fato corroborado pelo convite para a cerimônia de homologação da norma no Palácio do Planalto. No canto inferior esquerdo do flyer oficial, está disposto um logo com cubos empilhados e os dizeres: “Base Nacional Comum Curricular: educação é a base”. Não se trata de um simples trocadilho – é a própria expressão da vontade de governo.

Veja abaixo o flyer:

O Conselho Nacional de Educação aprovou a BNCC por 20 votos a três, tramitando a matéria com extrema celeridade. No entanto, permanece há 7 anos no mesmo CNE o encaminhamento irresoluto do parecer CNE/Câmara de Educação Básica 8/2010 que trata da implementação do Custo Aluno-Qualidade Inicial – proposta criada e desenvolvida pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação para regulamentar o padrão mínimo de qualidade da educação básica pública nacional, previsto na Constituição Federal de 1988 e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB).

Tanto quanto a BNCC, o CAQi deveria ter sido implementado em junho de 2016. Ambos deveriam constar da regulamentação do Sistema Nacional de Educação (SNE). O CAQi determina que toda escola pública brasileira tenha profissionais da educação condignamente remunerados – a partir da Lei do Piso do Magistério –, com política de carreira, formação continuada, número adequado de alunos por turma, bibliotecas, laboratórios (de ciências, informática, artes), internet banda larga, brinquedotecas, quadra poliesportiva coberta, alimentação nutritiva e transporte escolar seguro. Para tanto, será preciso que o Governo Federal transfira para os governos estaduais e municipais cerca de R$ 50 bilhões, a mais, por ano. Esse é o custo para o Brasil ter escolas decentes e aptas ao processo de ensino-aprendizagem. E essa demanda está, inclusive, inscrita no parágrafo primeiro do Art. 211 da Constituição Federal, além de constar em diversos dispositivos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

O Conselho Nacional de Educação que aprovou a BNCC foi reformulado por Michel Temer e seu Ministro da Educação, Mendonça Filho – logo após a instalação do governo provisório e antes de ser concluído o processo de impeachment de Dilma Rousseff. Nunca houve dúvida de que se trata de um colegiado submisso. A celeridade do órgão com a aprovação da base curricular, frente à sua letargia com a normatização final do CAQi, indica a determinação da ampla maioria de seus membros em seguir a lógica do governo: “a educação é a base”, ou melhor, a BNCC. E essa é a política de educação sob o teto dos gastos públicos federais.

Uma base curricular para os ultraconservadores chamarem de sua

Como os ultraliberais possuem apoio irrisório entre os educadores e as educadoras, bem como há forte rejeição às suas think tanks, as fundações empresariais, a BNCC de Temer cedeu aos ultraconservadores, apoiados e apoiadores deste governo. Desde a terceira versão, por decisão da secretária-executiva do Ministério da Educação, a tucana Maria Helena Guimarães de Castro, o MEC excluiu os temas de identidade de gênero e de orientação sexual da base curricular.

Abaixo foto de um encontro, realizado na tarde do dia 14 de março de 2017, quando representantes das Frentes Evangélica e Católica do Congresso Nacional receberam o compromisso de Maria Helena Guimarães de Castro de excluir questões de identidade de gênero e orientação sexual da BNCC. Entre os presentes estavam o procurador da República, Guilherme Schelb, os deputados Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ) e João Campos (PRB-GO).

 

Além de matérias em veículos de imprensa cristãos, a submissão do Ministério da Educação à vontade das bancadas fundamentalistas recebeu atenção de reportagem do diário O Globo, entre outros. Por meio de denúncia da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, o fato foi tão vexatório que foi criticado em pronunciamento oficial de três relatores da Organização das Nações Unidas (ONU) para os Direitos Humanos à Educação, Liberdade de Expressão e Liberdade Religiosa.

O bispo anglicano Desmond Tutu, laureado com o Prêmio Nobel da Paz em 1984 por sua luta contra o apartheid em seu país, a África do Sul, ensinou que “se você é neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor”. Ao excluir identidade de gênero e orientação sexual da BNCC, o governo Temer decidiu que as escolas não devem promover valores constitucionais de combate a todas às formas de discriminação – optando por excluir de um instrumento curricular a necessidade de enfrentamento do machismo, da homofobia, do sexismo e da misoginia nas escolas brasileiras, justamente em um país recordista em casos de estupro, agressões de toda ordem a mulheres, feminicídio e homicídios contra pessoas LGBT. É uma posição mais indigna do que covarde.

Como se não bastasse, em incorporação recorde, o Conselho Nacional de Educação incluiu o ensino religioso na BNCC, sem isso ter sido demandado pela decisão recente do Supremo Tribunal Federal que permite – mas não obriga –, o ensino religioso nas escolas públicas brasileiras. Em resumo, essa base curricular é o primeiro documento educacional que se submete às pressões do movimento “Escola sem Partido” (aquele de um partido só, dedicado à manutenção do status quo).

Uma BNCC antiquada e equivocada

A BNCC homologada nasce velha e equivocada em termos pedagógicos – aliás, ela sequer considera a pedagogia. Criada por meio de um processo fantasioso de participação, inflado em 8.400%, resultou em um documento fraco, que não irá cumprir com sua missão: orientar o trabalho docente. Pelo contrário, servirá apenas para controlá-lo e desvalorizá-lo ainda mais. Enquanto ela existir (a BNCC), sua função residirá, exclusivamente, no subsídio às avaliações de larga escala e à produção de livros didáticos – o que, diante do obscurantismo da norma homologada, não é pouco, além de ser perigoso.

Em “Administração escolar: uma introdução crítica”, publicado em 1986, Vitor Henrique Paro demonstrou que se a administração é o uso racional de recursos para determinados fins, a administração escolar é o uso racional de recursos para as finalidades da educação. Assim, uma política pública educacional que desconsidera a pedagogia está fadada ao fracasso. Ao praticamente retomar a seriação do ensino fundamental, ao cometer o erro de acelerar – e forçar – a alfabetização de crianças, ao mergulhar no obscurantismo, mas – principalmente – ao investir no tradicionalismo pedagógico, a BNCC irá falhar – caso alguém queira levar a sério as boas intenções do instrumento curricular que nasceu pelas mãos de Michel Temer.

O que diriam Paulo Freire e Anísio Teixeira sobre a BNCC de Michel Temer?             

É sabido que na educação há poucos consensos. Um deles é que Paulo Freire e Anísio Teixeira são os dois maiores educadores da História do Brasil, os únicos reconhecidos mundialmente. Fica uma pergunta: o que eles diriam sobre a BNCC?

Tive o prazer de escrever um perfil de Anísio Teixeira para uma revista do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Deduzo que o saudoso baiano de Caetité diria que a base curricular de Temer contradiz uma experiência escolar significativa e democrática, orientada a educar ao invés de simplesmente instruir. Para Anísio Teixeira, a missão do ensino só podia ser o desenvolvimento da inteligência, da tolerância e da felicidade. E era para dar conta disso que se fazia necessário reformar a escola e o sistema público de ensino. Nada mais conflitivo com a base curricular temerista.

Paulo Freire diria que a base curricular de Michel Temer é própria expressão da educação bancária, aquela que pressupõe que o aluno nada sabe e que o professor transmite o conhecimento, como se essa transmissão fosse possível em termos práticos. Provavelmente, Paulo Freire anotaria que a novidade dessa BNCC é seu desserviço na promoção de um controle injusto do trabalho docente, desvencilhado da oferta de condições de trabalho aos educadores e da boa prática pedagógica, que é obrigatoriamente dialógica, emancipatória e construtiva.

Entre as coincidências que superam o acaso na História, no último dia 14/12, Paulo Freire foi reafirmado como “Patrono da Educação Brasileira” pelo Senado Federal. O título foi posto em dúvida por movimentos ultraconservadores que apoiam Michel Temer.

Com a deputada Luiza Erundina e a educadora Nita Freire, coordenei o “Coletivo Paulo Freire por uma Educação Democrática”. Cidadãs e cidadãos do mundo todo se mobilizaram para reiterar o pensamento e a prática pedagógica freireana como um norte para a educação brasileira. Vencemos! E nas comemorações pela vitória, reafirmamos nosso compromisso de lutar pela materialização das ideias de Paulo Freire nas escolas públicas brasileiras, o que é quase inédito em solo nacional, já que elas são implementadas – ainda que de forma enviesada -, nas escolas privadas mais caras do Brasil.

Contudo, na manhã do dia seguinte, em concepção oposta a de Paulo Freire, o Conselho Nacional de Educação aprovou essa BNCC eivada de equívocos para a educação infantil e para o ensino fundamental.

Por uma questão de bom senso é preciso fazer com que o pensamento de Paulo Freire – reconhecido mundialmente – tenha preferência sobre esse instrumento curricular pobre, obscurantista e rudimentar. Até porque há uma lógica de projeto educacional em jogo; e ela precisa ser superada. Até 1990, como bem demonstrou Maria Helena Souza Patto no clássico “A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia”, a culpa pelas mazelas educacionais brasileiras era atribuída aos alunos. A política educacional estava orientada à reprovação dos estudantes, sendo a repetência e a punição uma espécie de método (anti)pedagógico de (des)educar.

A tentativa de superar essa visão se deu com uma resposta cínica ao problema da qualidade do ensino. Como os governantes não queriam priorizar, de fato, a educação, implementando mecanismos como o CAQi, optaram por controlar o ensino sem, no entanto, lhe dar condições de efetiva realização. Paulo Renato Sousa, Ministro da Educação dos dois mandatos presidenciais de Fernando Henrique Cardoso (FHC), começa, no final da década de 1990, a priorizar e aprofundar a implementação de avaliações de larga escala no Brasil como expressão maior do conjunto política educacional daquele Governo Federal – o que é um contrassenso, pois uma etapa do ciclo de uma política pública, no casa a avaliação de alguns aspectos da aprendizagem na educação básica pública, jamais pode ser tomada como o todo.

Infelizmente, por não dar ouvidos aos educadores e às educadoras, as gestões de Lula e Dilma não enfrentaram o gerencialismo educacional de FHC e, pior, chegaram até a aprofundar esse modelo de avaliação; sem desconsiderar aqui acertos dos governos petistas – em que pese, também, esses e outros equívocos.

Como resultado, se antes a culpa do fracasso escolar era do próprio aluno e isso era um absurdo, hoje é dos professores. Permanece, portanto, a injustiça, porém com outra expressão, forma e face. E que fique claro: a BNCC do jeito em que foi aprovada e homologada, entre tantas outras coisas, é apenas mais um meio para o aprofundamento dessa lógica. É preciso resistir, mas sem deixar de insistir na implementação plena de instrumentos reais de promoção do direito à educação, como o Custo Aluno-Qualidade Inicial (CAQi).


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