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Arquivo : Governo Temer

O ímpeto do governo Temer em inviabilizar o direito à educação
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Daniel Cara

O alvo agora é o Custo Aluno-Qualidade Inicial (CAQi), mecanismo criado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação para que todas as escolas públicas, em todos os Estados e Municípios brasileiros, sejam dignas e capazes de dar condições para as professoras e os professores ensinarem e as estudantes e os estudantes aprenderem. O problema para Temer, sua equipe e seus aliados é que o CAQi custa quase R$ 50 bilhões (cinquenta bilhões de reais) a mais, por ano, que devem ser investidos em educação básica pública. Porém, para o Palácio do Planalto, os direitos do povo brasileiro não cabem no orçamento público federal – que em 2018 é de cerca de R$ 3,5 trilhões, segundo a Lei Orçamentária Anual. Ou seja, dinheiro há – a efetivação do CAQi custa, aproximadamente, 0,15% do orçamento da União. O que não existe, portanto, é vontade política. Além disso, há também o compromisso de Temer de implantar um projeto econômico que inviabiliza o direito à educação pública, gratuita, laica e de qualidade, bem como também inviabilizará os demais direitos sociais garantidos pela Constituição Federal de 1988. A Carta Magna, que em 05 de outubro de 2018 completará 30 anos, está sendo desconstruída de vez.
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Desde 2016, quando Michel Temer ascendeu de forma ilegítima ao Palácio do Planalto, a vida no Brasil se tornou uma sucessão de golpes à democracia e aos direitos sociais. Entre todos os ataques, nenhuma área tem sido mais alvejada do que a educação. O motivo é simples, a educação é a maior política pública brasileira: em todo dia letivo, quase 40 milhões de estudantes vão às escolas públicas de educação básica em todo país e mais de 1 milhão de jovens estudam nas universidades administradas pelos governos. Além disso, quando chegam às suas escolas e faculdades, alunas e alunos são recebidos por, aproximadamente, 5 milhões de educadoras e educadores, que desempenham diferentes funções para a manutenção e desenvolvimento do ensino. No entanto, além do gigantismo –que demanda um custo, que jamais foi devidamente empenhado –, se a política educacional for bem-sucedida, ela tem a capacidade de impulsionar mudanças profundas nas estruturas sociais, políticas e econômicas do país. E é exatamente isso que o governo Temer quer evitar. Por isso, a educação é um alvo tão importante e prioritário.

As decisões do governo Temer são milimétricas e objetivas. A primeira medida apresentada por ele foi o “novo regime fiscal”. Promulgado na forma da Emenda à Constituição 95/2016. Esse regime determina que nenhum centavo novo do orçamento federal será investido em educação, saúde, assistência social, cultura, trabalho e renda e demais políticas sociais e econômicas. Com o debate público asfixiado no Brasil, como coordenador geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, tive a oportunidade de levar o tema à Organização das Nações Unidas (ONU) e à Organização dos Estados Americanos (OEA).

Quando tomou conhecimento do caso, em setembro de 2016, o ex-premiê britânico, Gordon Brown, ficou estarrecido com a medida, bem como outras lideranças internacionais. Em 6 de dezembro de 2016, o presidente da Comissão de Interamericana de Direitos Humanos da OEA, James Cavallaro, deixou claro que a EC 95/2016 desrespeita o princípio do “não retrocesso” em termos de Direitos Humanos, na época a matéria tramitava na forma da PEC 55, no Senado Federal. Dias depois, 9 em dezembro de 2016, relatores da ONU deixaram claro que o “novo regime fiscal” causará pobreza e impedirá o Brasil de cumprir com o Plano Nacional de Educação 2014-2024 (PNE). O mundo sabe que as coisas vão mal por aqui. E isso se tornou oficial nos duros questionamentos feitos ao país no marco da Revisão Periódica Universal de Direitos Humanos, realizada em Genebra, no primeiro semestre de 2017. A pressão é tão grande que o governo Temer chegou a impedir a visita de relatores da ONU sobre os impactos nocivos da Emenda Constitucional 95/2016.

Durante a tramitação do novo e inacreditável regime fiscal, o Governo Temer apresentou as anti-reformas do Ensino Médio e Trabalhista. E elas, infelizmente, foram aprovadas por um Congresso Nacional articulado por uma aliança perniciosa entre ultraconservadores e ultraliberais. Considerando a lógica da nossa Constituição Federal, as reformas devem servir para cumprir direitos e garantir a qualidade de vida da população; porém, as medidas temeristas vão exatamente no caminho inverso, tornando-se, portanto, anti-reformas. Tanto é assim que a Reforma do Ensino Médio vai formar precariamente jovens para um mercado de trabalho desregulamentado pela alterações na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e pautado por um setor de serviços débil. A trajetória profissional da maioria da população será marcada, nesse contexto, pelo subemprego e pelo trabalho indecente – estimulados, como anteriormente dito, pela anti-reforma trabalhista. No entanto, os mais ricos, matriculados em escolas particulares caríssimas e de elite, terão uma formação objetivamente dedicada a se diferenciarem do restante da população, o que deve resultar em ainda maior concentração de renda. Ou seja, nunca o Brasil teve uma política educacional que amplia de modo tão claro as desigualdades socioeconômicas e civis.

Para poder impor seus desígnios, e enfraquecer a crítica, o governo Temer liquidou o Fórum Nacional de Educação (FNE) e a Conferência Nacional de Educação (Conae), mantendo no FNE apenas seus fiéis aliados. A medida é precisa: o FNE é órgão responsável por organizar as edições da Conae e avaliar o (des)cumprimento do PNE e das demais políticas educacionais. Se tudo fosse mantido como estava, tanto no âmbito do fórum, quanto da Conferência, haveria uma impactante denúncia dos prejuízos que esse governo e seus aliados impetraram e impetram às políticas educacionais. A intromissão no FNE foi tão grave que fez a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) do Ministério Público Federal (MPF) se manifestar contra.

Como se não bastasse, o governo Temer vetou o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Sinaeb) e, posteriormente, chegou ao disparate de censurar um artigo científico que tratava de sua implementação. O Sinaeb é demandado pelo PNE 2014-2024, fruto de proposição da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e do Centro de Estudos Educação e Sociedade (Cedes). O objetivo com o veto e censura foi evitar uma avaliação educacional que supere os limites das avaliações padronizadas de larga escala, buscando as verdadeiras causas das deficiências e insuficiências das políticas educacionais. Ou seja, o governo Temer não quer avaliar de modo profundo a crise da educação – que vai sendo aprofundada por ele próprio e seus aliados.

Posteriormente, aprofundando uma aliança com fundações e institutos empresariais que estava em vigor desde o governo Dilma, o governo Temer apresentou e aprovou uma versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) medíocre para a educação infantil e para o ensino fundamental. É uma proposta curricular conteudista, que evita ou secundariza os debates sobre as desigualdades e as injustiças sociais e econômicas do país, bem como evita o combate às discriminações de gênero e orientação sexual. Com essa BNCC aprovada, os estudantes não terão estímulo ao pensamento crítico e sequer aprenderão os conteúdos, porque não vão ser alteradas as condições de trabalho nas escolas – condição necessária para a realização do processo de ensino-aprendizagem. Para piorar, ampliando os efeitos de uma decisão equivocada do Supremo Tribunal Federal, a BNCC praticamente obrigará o ensino religioso nas escolas públicas, ferindo o princípio já combalido do Estado Laico. Os dois maiores educadores brasileiros, Paulo Freire e Anísio Teixeira, certamente desaprovariam esse documento que busca, de maneira cristalina, servir como uma plataforma sólida de diretrizes para a privatização da educação básica pública.

No ímpeto de tirar a BNCC do papel, o governo Temer apresentou os editais Capes 6 e 7/2018, que tratam do novo Programa de Residência Pedagógica (PRP) e do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid), respectivamente. As propostas para os dois programas articulam-se à atual política de formação de professores do MEC, empenhada em submeter a formação inicial dos docentes à nova Base Curricular. Treze entidades se posicionaram contra os editais, entre elas estão: a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), a Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (ANFOPE), a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), o Fórum Nacional de Diretores de Faculdades, Centros de Educação ou Equivalentes das Universidades Públicas Brasileiras (FORUMDIR) e a Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

Por último, no dia 15 de março de 2018, enquanto o país estava comovido pela dolorosa, covarde e inaceitável execução da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ) e de seu motorista, Anderson Gomes, no Centro do Rio de Janeiro, o governo Temer editou portaria que cria o Comitê Permanente de Avaliação de Custos da Educação Básica (CPACEB). No ato de criação desse órgão, o Ministério da Educação, liderado por Mendonça Filho, revogou a portaria MEC 142/2016.

A portaria MEC 142/2016 tinha como principal desafio analisar os caminhos para a implementação do Custo Aluno Qualidade-Inicial (CAQi) e contava com a presença da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, criadora do mecanismo, e da Confederação dos Trabalhadores em Educação (CNTE), que representa todos os profissionais da educação básica pública. Já a portaria MEC 233/2018, que institui a CPACEB pretende, antes de tudo, avaliar a viabilidade de implementação dos mecanismos de financiamento da educação, sem quaisquer determinações de prazo – como ocorria no texto anterior. Ou seja, fica evidente que o objetivo é criar argumentos para não implementar instrumentos que deem condições de trabalho às educadoras e aos educadores e de aprendizagem às estudantes e aos estudantes.

Por que isso ocorre? O motivo é simples. Como foi dito anteriormente, o CAQi é um mecanismo criado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação; ele traduz em valores o quanto o Brasil precisa investir por aluno ao ano, em cada etapa e modalidade da educação básica pública, para garantir, ao menos, um padrão mínimo de qualidade do ensino. Para isso, o CAQi determina um número adequado de alunos por turma, formação, salários e carreira compatíveis com a responsabilidade dos profissionais da educação, instalações, equipamentos e infraestrutura adequados, na forma de insumos como laboratórios de ciências, bibliotecas, quadras poliesportivas cobertas, materiais didáticos, Internet banda larga entre outros – e tudo está demandado pelas leis do país, em especial a Constituição Federal e o PNE 2014-2024, que determinou a implantação do CAQi até junho de 2016.

O CAQi, portanto, contempla as condições de trabalho e os insumos materiais e humanos mínimos necessários para que os professores consigam ensinar e para que os alunos possam aprender. Contudo, a dívida educacional brasileira é tão grande que para garantir a dignidade nas escolas públicas é preciso investir cerca de R$ 50 bilhões a mais, por ano, em educação básica pública. E é isso que o governo Temer quer evitar com a instituição da CPACEB. A razão é óbvia, para Temer e seus aliados, a educação do povo brasileiro não cabe no orçamento público, que deve permanecer orientado para a manutenção da riqueza das elites, em um país no qual os 5% mais ricos detêm mesma fatia de renda que outros 95%, segundo estudo recente da Oxfam.

Para realizar seu trabalho de desmonte das esperanças do povo brasileiro, o governo Temer não opera sozinho. Ele tem aliados. E é preciso identifica-los. Alguns dias atrás, Mendonça Filho promoveu no Palácio do Planalto uma cerimônia de entrega da “Ordem do Mérito Educativo”. A lista dos laureados com essa antiga condecoração serve como um mapeamento quase preciso de quem prestou serviços ao Ministério da Educação desse governo, distribuídos, inclusive, em ordem de importância. Faltam alguns aliados – provavelmente por decisão deles próprios, no sentido de não quererem se comprometer –, mas é possível perceber ali, em quase totalidade, quem é quem no apoio a esse governo.

Até 2016, a Historiografia brasileira era quase unânime em apontar Café Filho como o pior governante do Brasil, desde o Império. Temer o supera, com larga vantagem – nunca o país teve um presidente tão prejudicial para o aprofundamento das desigualdades nacionais. E nunca uma equipe ministerial fez tão mal à educação quanto àquela liderada por Mendonça Filho.

Antes de terminar, poderia descrever aqui outros prejuízos impetrados pela equipe do Ministério da Educação de Michel Temer, liderada por Mendonça Filho, como o apoio concreto – ainda que constrangido – de movimentos ultraconservadores e perniciosos à qualidade da educação como o “Escola sem Partido”. Porém, o que foi já dito é suficiente para mostrar que o MEC busca formatar e submeter a educação ao teto dos gastos públicos federais, impostos pela Emenda à Constituição 95/2016, conhecida também como “Emenda das Desigualdades”. Mais do que isso, Temer pretende subordinar a política de educação a uma economia medíocre, que dá as costas para a industrialização e o desenvolvimento econômico, optando por um dinamismo (im)produtivo torpe, liderado por um setor de serviços de baixíssima complexidade. Com isso, a população brasileira ficará submetida a postos de trabalho de remuneração baixa, permanecendo alijada de qualquer patamar de qualidade de vida.

As decisões do governo Temer se encaixam perfeitamente, submetidas a uma lógica e um objetivo evidente: desconstruir a Constituição Federal de 1988. Temer e seus aliados não se importam com o fato de que as relações sociais no país estão sendo movidas pelo ódio e pela falta de bom senso. Eles não ligam que a população brasileira está sem emprego e sem amparo das políticas sociais. A ideia sequer é fazer tudo permanecer como está, Temer e seus aliados consideram isso oneroso demais. A ideia deles é pior: em nome de uma política econômica pautada pelos desígnios do mercado financeiro, a redução do Estado deve ser drástica, tornando o Brasil um lugar ainda mais árido para se viver. Nesse sentido, a desconstrução da política de educação cumpre um papel importante: a educação é um direito que abre porta aos demais. A consciência crítica e potente que ela gera é perigosa, a emancipação dos debaixo, os 95%, coloca em risco o poder dos 5% mais ricos. Por isso, é preciso denunciar, resistir e buscar meios para revogar todas as medidas desse governo, caso contrário o Brasil se tornará inabitável pelos próximos 20 anos, ou mais.

O governo Temer é a expressão mais clara do descomedimento denunciado por Tzvetan Todorov no ensaio “Os inimigos íntimos da democracia”. Para enfrentá-lo é preciso de mais, melhor e verdadeira democracia.

E para não pairar dúvidas sobre as intenções de Temer e de seus aliados no tocante à educação, o único veto à Lei Orçamentária Anual de 2018 foi à estimativa de recurso extra de R$ 1,5 bilhão para o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). Ou seja, definitivamente, é um governo que não deseja investir em educação.


#BNCC: O que Paulo Freire e Anísio Teixeira diriam sobre a base curricular?
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Daniel Cara

Construído por um processo de participação fantasioso, ignorando a pedagogia e pautado pelo obscurantismo, o documento curricular de Michel Temer servirá, no final, apenas para submeter as professoras e os professores a processos de controle

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) da educação infantil e do ensino fundamental foi homologada no dia 20/12 no Palácio do Planalto. Embora o texto tenha começado a ser debatido durante o governo Dilma Rousseff, o produto final não permite dúvida: o currículo homologado no Palácio do Planalto expressa a visão de educação do governo Michel Temer.

O governo Temer é fruto de uma aliança ultra, articulada entre ultraliberais e ultraconservadores. Representando os interesses do mercado financeiro, os ultraliberais ditam o programa de governo, advogando – essencialmente – que a Constituição Federal não cabe no orçamento público. Por decorrência lógica, para eles, o povo brasileiro não cabe no orçamento público. Um pressuposto absurdo e inaceitável, mas em vigor no país desde a promulgação da Emenda à Constituição 95/2016 – que congelou por 20 anos os gastos púbicos federais em educação, saúde e assistência social; e todas as demais áreas. Além dessa alteração constitucional, o ultraliberalismo de Temer impôs ao país a reforma trabalhista, a venda de ativos nacionais a preços irrisórios, o processo de desconstrução do controle nacional sobre a exploração de petróleo e gás natural, a evasão tributária às petroleiras e a reforma do ensino médio. Há ainda a tentativa de reformar a previdência social.

Já os ultraconservadores desejam impor uma composição de sociedade pautada por uma concepção desatualizada de família, orientada pelo predomínio machista do homem sobre a mulher e pela exclusão das identidades de gênero e de orientação sexual que diferem da heterossexualidade. Ou seja, defendem posições que agridem os valores mais básicos expressos na Constituição Federal de 1988 e na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, divergindo, portanto, do pressuposto mínimo de respeito ao próximo.

Infelizmente, a Base Nacional Comum Curricular de Michel Temer é filha legítima dessas duas correntes ideológicas, aliançadas no Brasil desde o processo de impeachment de Dilma Rousseff.

Uma base curricular condizente com a austeridade econômica

Relatada no Conselho Nacional de Educação por José Francisco Soares e Joaquim José Neto Soares, dois especialistas em avaliação de larga escala e ex-presidentes do Inep – autarquia que, infelizmente, tem sido reduzida à aplicação de testes padronizados –, a BNCC será mais útil para o exercício de um controle antipedagógico do trabalho docente, do que para dar apoio e subsídios ao trabalho das educadoras e dos educadores.

A base curricular praticamente recria a experiência de séries no ensino fundamental, conflitando com a lógica pedagogicamente mais avançada de ciclos. Orientada por supostos direitos de aprendizagem, a BNCC reduz o trabalho pedagógico dos professores com os alunos a uma lista de conteúdos que devem ser cumpridos e (equivocadamente) transmitidos, tornando o processo de ensino-aprendizagem mimético, irrefletido e irrealizável.

Professores com boa formação serão capazes de superar a BNCC, mas – no início – educadores com déficit formativo serão pressionados a se submeter a ela, sendo impelidos a seguir à risca o instrumento curricular que será tomado como uma mera receita. Se isso funcionasse, o que obviamente não é o caso, os estudantes poderiam ser ensinados eficientemente por máquinas e não por seres humanos.

Na História, algumas coincidências parecem ir além do acaso. Aprovada em 15/12 no Conselho Nacional de Educação, no mesmo dia em que a Emenda à Constituição 95/2016 completou um ano de vida, a base curricular de Temer é o projeto educacional que cabe dentro da política de austeridade econômica desse governo. Não se trata de interpretação. É o próprio fato corroborado pelo convite para a cerimônia de homologação da norma no Palácio do Planalto. No canto inferior esquerdo do flyer oficial, está disposto um logo com cubos empilhados e os dizeres: “Base Nacional Comum Curricular: educação é a base”. Não se trata de um simples trocadilho – é a própria expressão da vontade de governo.

Veja abaixo o flyer:

O Conselho Nacional de Educação aprovou a BNCC por 20 votos a três, tramitando a matéria com extrema celeridade. No entanto, permanece há 7 anos no mesmo CNE o encaminhamento irresoluto do parecer CNE/Câmara de Educação Básica 8/2010 que trata da implementação do Custo Aluno-Qualidade Inicial – proposta criada e desenvolvida pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação para regulamentar o padrão mínimo de qualidade da educação básica pública nacional, previsto na Constituição Federal de 1988 e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB).

Tanto quanto a BNCC, o CAQi deveria ter sido implementado em junho de 2016. Ambos deveriam constar da regulamentação do Sistema Nacional de Educação (SNE). O CAQi determina que toda escola pública brasileira tenha profissionais da educação condignamente remunerados – a partir da Lei do Piso do Magistério –, com política de carreira, formação continuada, número adequado de alunos por turma, bibliotecas, laboratórios (de ciências, informática, artes), internet banda larga, brinquedotecas, quadra poliesportiva coberta, alimentação nutritiva e transporte escolar seguro. Para tanto, será preciso que o Governo Federal transfira para os governos estaduais e municipais cerca de R$ 50 bilhões, a mais, por ano. Esse é o custo para o Brasil ter escolas decentes e aptas ao processo de ensino-aprendizagem. E essa demanda está, inclusive, inscrita no parágrafo primeiro do Art. 211 da Constituição Federal, além de constar em diversos dispositivos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

O Conselho Nacional de Educação que aprovou a BNCC foi reformulado por Michel Temer e seu Ministro da Educação, Mendonça Filho – logo após a instalação do governo provisório e antes de ser concluído o processo de impeachment de Dilma Rousseff. Nunca houve dúvida de que se trata de um colegiado submisso. A celeridade do órgão com a aprovação da base curricular, frente à sua letargia com a normatização final do CAQi, indica a determinação da ampla maioria de seus membros em seguir a lógica do governo: “a educação é a base”, ou melhor, a BNCC. E essa é a política de educação sob o teto dos gastos públicos federais.

Uma base curricular para os ultraconservadores chamarem de sua

Como os ultraliberais possuem apoio irrisório entre os educadores e as educadoras, bem como há forte rejeição às suas think tanks, as fundações empresariais, a BNCC de Temer cedeu aos ultraconservadores, apoiados e apoiadores deste governo. Desde a terceira versão, por decisão da secretária-executiva do Ministério da Educação, a tucana Maria Helena Guimarães de Castro, o MEC excluiu os temas de identidade de gênero e de orientação sexual da base curricular.

Abaixo foto de um encontro, realizado na tarde do dia 14 de março de 2017, quando representantes das Frentes Evangélica e Católica do Congresso Nacional receberam o compromisso de Maria Helena Guimarães de Castro de excluir questões de identidade de gênero e orientação sexual da BNCC. Entre os presentes estavam o procurador da República, Guilherme Schelb, os deputados Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ) e João Campos (PRB-GO).

 

Além de matérias em veículos de imprensa cristãos, a submissão do Ministério da Educação à vontade das bancadas fundamentalistas recebeu atenção de reportagem do diário O Globo, entre outros. Por meio de denúncia da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, o fato foi tão vexatório que foi criticado em pronunciamento oficial de três relatores da Organização das Nações Unidas (ONU) para os Direitos Humanos à Educação, Liberdade de Expressão e Liberdade Religiosa.

O bispo anglicano Desmond Tutu, laureado com o Prêmio Nobel da Paz em 1984 por sua luta contra o apartheid em seu país, a África do Sul, ensinou que “se você é neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor”. Ao excluir identidade de gênero e orientação sexual da BNCC, o governo Temer decidiu que as escolas não devem promover valores constitucionais de combate a todas às formas de discriminação – optando por excluir de um instrumento curricular a necessidade de enfrentamento do machismo, da homofobia, do sexismo e da misoginia nas escolas brasileiras, justamente em um país recordista em casos de estupro, agressões de toda ordem a mulheres, feminicídio e homicídios contra pessoas LGBT. É uma posição mais indigna do que covarde.

Como se não bastasse, em incorporação recorde, o Conselho Nacional de Educação incluiu o ensino religioso na BNCC, sem isso ter sido demandado pela decisão recente do Supremo Tribunal Federal que permite – mas não obriga –, o ensino religioso nas escolas públicas brasileiras. Em resumo, essa base curricular é o primeiro documento educacional que se submete às pressões do movimento “Escola sem Partido” (aquele de um partido só, dedicado à manutenção do status quo).

Uma BNCC antiquada e equivocada

A BNCC homologada nasce velha e equivocada em termos pedagógicos – aliás, ela sequer considera a pedagogia. Criada por meio de um processo fantasioso de participação, inflado em 8.400%, resultou em um documento fraco, que não irá cumprir com sua missão: orientar o trabalho docente. Pelo contrário, servirá apenas para controlá-lo e desvalorizá-lo ainda mais. Enquanto ela existir (a BNCC), sua função residirá, exclusivamente, no subsídio às avaliações de larga escala e à produção de livros didáticos – o que, diante do obscurantismo da norma homologada, não é pouco, além de ser perigoso.

Em “Administração escolar: uma introdução crítica”, publicado em 1986, Vitor Henrique Paro demonstrou que se a administração é o uso racional de recursos para determinados fins, a administração escolar é o uso racional de recursos para as finalidades da educação. Assim, uma política pública educacional que desconsidera a pedagogia está fadada ao fracasso. Ao praticamente retomar a seriação do ensino fundamental, ao cometer o erro de acelerar – e forçar – a alfabetização de crianças, ao mergulhar no obscurantismo, mas – principalmente – ao investir no tradicionalismo pedagógico, a BNCC irá falhar – caso alguém queira levar a sério as boas intenções do instrumento curricular que nasceu pelas mãos de Michel Temer.

O que diriam Paulo Freire e Anísio Teixeira sobre a BNCC de Michel Temer?             

É sabido que na educação há poucos consensos. Um deles é que Paulo Freire e Anísio Teixeira são os dois maiores educadores da História do Brasil, os únicos reconhecidos mundialmente. Fica uma pergunta: o que eles diriam sobre a BNCC?

Tive o prazer de escrever um perfil de Anísio Teixeira para uma revista do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Deduzo que o saudoso baiano de Caetité diria que a base curricular de Temer contradiz uma experiência escolar significativa e democrática, orientada a educar ao invés de simplesmente instruir. Para Anísio Teixeira, a missão do ensino só podia ser o desenvolvimento da inteligência, da tolerância e da felicidade. E era para dar conta disso que se fazia necessário reformar a escola e o sistema público de ensino. Nada mais conflitivo com a base curricular temerista.

Paulo Freire diria que a base curricular de Michel Temer é própria expressão da educação bancária, aquela que pressupõe que o aluno nada sabe e que o professor transmite o conhecimento, como se essa transmissão fosse possível em termos práticos. Provavelmente, Paulo Freire anotaria que a novidade dessa BNCC é seu desserviço na promoção de um controle injusto do trabalho docente, desvencilhado da oferta de condições de trabalho aos educadores e da boa prática pedagógica, que é obrigatoriamente dialógica, emancipatória e construtiva.

Entre as coincidências que superam o acaso na História, no último dia 14/12, Paulo Freire foi reafirmado como “Patrono da Educação Brasileira” pelo Senado Federal. O título foi posto em dúvida por movimentos ultraconservadores que apoiam Michel Temer.

Com a deputada Luiza Erundina e a educadora Nita Freire, coordenei o “Coletivo Paulo Freire por uma Educação Democrática”. Cidadãs e cidadãos do mundo todo se mobilizaram para reiterar o pensamento e a prática pedagógica freireana como um norte para a educação brasileira. Vencemos! E nas comemorações pela vitória, reafirmamos nosso compromisso de lutar pela materialização das ideias de Paulo Freire nas escolas públicas brasileiras, o que é quase inédito em solo nacional, já que elas são implementadas – ainda que de forma enviesada -, nas escolas privadas mais caras do Brasil.

Contudo, na manhã do dia seguinte, em concepção oposta a de Paulo Freire, o Conselho Nacional de Educação aprovou essa BNCC eivada de equívocos para a educação infantil e para o ensino fundamental.

Por uma questão de bom senso é preciso fazer com que o pensamento de Paulo Freire – reconhecido mundialmente – tenha preferência sobre esse instrumento curricular pobre, obscurantista e rudimentar. Até porque há uma lógica de projeto educacional em jogo; e ela precisa ser superada. Até 1990, como bem demonstrou Maria Helena Souza Patto no clássico “A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia”, a culpa pelas mazelas educacionais brasileiras era atribuída aos alunos. A política educacional estava orientada à reprovação dos estudantes, sendo a repetência e a punição uma espécie de método (anti)pedagógico de (des)educar.

A tentativa de superar essa visão se deu com uma resposta cínica ao problema da qualidade do ensino. Como os governantes não queriam priorizar, de fato, a educação, implementando mecanismos como o CAQi, optaram por controlar o ensino sem, no entanto, lhe dar condições de efetiva realização. Paulo Renato Sousa, Ministro da Educação dos dois mandatos presidenciais de Fernando Henrique Cardoso (FHC), começa, no final da década de 1990, a priorizar e aprofundar a implementação de avaliações de larga escala no Brasil como expressão maior do conjunto política educacional daquele Governo Federal – o que é um contrassenso, pois uma etapa do ciclo de uma política pública, no casa a avaliação de alguns aspectos da aprendizagem na educação básica pública, jamais pode ser tomada como o todo.

Infelizmente, por não dar ouvidos aos educadores e às educadoras, as gestões de Lula e Dilma não enfrentaram o gerencialismo educacional de FHC e, pior, chegaram até a aprofundar esse modelo de avaliação; sem desconsiderar aqui acertos dos governos petistas – em que pese, também, esses e outros equívocos.

Como resultado, se antes a culpa do fracasso escolar era do próprio aluno e isso era um absurdo, hoje é dos professores. Permanece, portanto, a injustiça, porém com outra expressão, forma e face. E que fique claro: a BNCC do jeito em que foi aprovada e homologada, entre tantas outras coisas, é apenas mais um meio para o aprofundamento dessa lógica. É preciso resistir, mas sem deixar de insistir na implementação plena de instrumentos reais de promoção do direito à educação, como o Custo Aluno-Qualidade Inicial (CAQi).


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