Blog do Daniel Cara

Fechamento de escolas: agressão ao direito à educação

Daniel Cara

Em São Paulo, Geraldo Alckmin propõe fechar 94 escolas. No Brasil, mais de 37 mil escolas do campo foram fechadas. O fechamento de escolas está virando política de Estado no país, em grave desrespeito ao direito constitucional à educação.

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O Brasil tem acompanhado a tentativa de fechamento de 94 escolas públicas no Estado de São Paulo. Afirmando a necessidade de reorganizar o ensino paulista, o governador Geraldo Alckmin e seu secretário de educação, Herman Voorwald, buscam elaborar argumentos pedagógicos para justificar o injustificável: fechar escolas. O objetivo evidente é reduzir custos, sem melhorar a qualidade do ensino.

As faculdades de educação da USP e da Unicamp já manifestaram repúdio à medida. O manifesto da USP ressalta que a proposta do governo estadual busca estabelecer uma nova etapa na transferência de responsabilidades educacionais do governo paulista aos municípios.

O texto crava: durante “a passagem de 1995 para 1996, o processo de reorganização [estadual] provocou o fechamento de 150 escolas, com a diminuição de 10.014 classes. E, entre 1995 e 1998, a rede estadual diminuiu 376.230 alunos atendidos com um decréscimo de 5,61%, enquanto as redes municipais aumentaram para 841.860 atendimentos, crescendo quase 60%. Tais medidas, como sabemos, não promoveram a melhoria da escola pública estadual, de suas condições de ensino e trabalho”.

Além de fechar as 94 escolas, a atual proposta de “reorganização” do ensino atingirá mais de 1500 estabelecimentos, prejudicando estudantes e suas famílias, além de milhares de profissionais da educação.

Graças à mobilização e resistência dos estudantes, a reforma está travada. Hoje eles ocupam cerca de 60 estabelecimentos. A Secretaria de Estado da Educação de São Paulo não confirma o número, mas também não o contraria de modo enfático. É provável (e desejável) que mais escolas sejam ocupadas nos próximos dias. Com isso, a sociedade paulista terá a chance de decidir se aceita ou não a medida.

E o problema não está circunscrito apenas a São Paulo. Analisando o quadro nacional, é possível dizer que o fechamento de escolas está se tornando uma política de Estado no Brasil, não sendo um demérito exclusivo do governador Geraldo Alckmin. Nos últimos 15 anos, mais de 37 mil escolas do campo foram fechadas. Apenas em 2014, segundo análise do Censo Escolar produzida pelo MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), 4 mil escolas do campo foram fechadas. A Bahia (872 unidades), o Maranhão (407) e o Piauí (377) lideraram o fechamento de escolas nas áreas rurais em 2014.

Em nome de uma suposta racionalização, parte significativa da gestão pública brasileira tem errado ao colocar a redução de custos antes do objetivo primordial dos governos: a promoção dos direitos sociais e, nesse caso, do direito à educação.

No clássico “Administração escolar: introdução crítica”, Vitor Henrique Paro defende que a administração é, em seu conceito geral, a utilização racional de recursos para o atingimento de determinados fins. Contudo, ele lembra que os fins das políticas de educação são educacionais e pedagógicos. A gestão dos recursos, portanto, deve ser coerente com essa finalidade.

Se o governador Geraldo Alckmin quer racionalizar o ensino paulista poderia ampliar a educação em tempo integral, aumentar o número de concursos públicos para ingresso no magistério, valorizar os profissionais da educação e melhorar a infraestrutura das escolas. São Paulo não deve fechar escolas, deve aprimorar e fazer melhor uso dos estabelecimentos existentes. É o que querem os estudantes. Deveria ser a vontade de todos.


Rio Doce e Paris: não cabe discutir qual foi a maior atrocidade

Daniel Cara

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Inúmeros brasileiros questionam nas redes sociais a superexposição dos atos terroristas, ocorridos ontem (13/11) em Paris, em detrimento da problematização do crime socioambiental acontecido no Rio Doce (05/11), em Minas Gerais, com o rompimento das barragens de Fundão e Santarém, na unidade industrial de Germano, entre distritos dos municípios de Mariana e Ouro Preto.

Ambos foram lamentáveis e devem ser discutidos, em profundidade, na opinião pública. E é preciso punir os culpados.

Ainda são incalculáveis os efeitos socioeconômicos e ambientais da lama tóxica que vazou das barragens e cimenta o Rio Doce. É urgente a consequente responsabilização da empresa Samarco, controlada pela Companhia do Vale do Rio Doce e pela anglo-australiana BHP Billiton. Nenhum valor monetário é capaz de ressarcir a destruição de um ecossistema. Ainda mais se for considerada a letargia dos governantes no enfrentamento da questão.

Ao mesmo tempo, nada justifica os atos covardes praticados pelo Estado Islâmico em Paris. O fato é que ontem o terrorismo assassinou inúmeros cidadãos inocentes. E a tendência é de que eventos semelhantes continuem ocorrendo. Na prática, o Estado Islâmico declarou guerra ao mundo, ocidental e oriental. Está em risco qualquer um que não coadune com os preceitos arcaicos e preconceituosos da organização. Aliás, nenhum preceito – arcaico ou moderno – pode ser imposto pela força.

As atrocidades cometidas pelos Estados Unidos da América e outros países ocidentais no Oriente Médio não se justificam, tanto quanto os atos de terror.

A banalização do crime e do mal é inaceitável e deve ser repudiada. Embora avanços inegáveis no campo dos Direitos Humanos – ainda que em risco no Brasil e no mundo –, ela reside no seio da humanidade. Enfrentá-la deve ser uma missão de todas as nações e indivíduos. A educação tem um papel relevante nesse processo.


Pnad 2014: o Brasil não deve cumprir metas do PNE

Daniel Cara

São preocupantes os dados educacionais colhidos na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), realizada pelo IBGE. Mantidas as tendências das diferentes taxas de escolarização, o Brasil não deve cumprir com metas urgentes do Plano Nacional de Educação (PNE 2014-2024), do programa internacional Educação Para Todos (2000-2015) e com as demandas da Constituição Federal.

Segundo a Carta Magna e o PNE, até 2016, o país precisa universalizar a matrícula da população entre 4 e 17 anos. Na pré-escola, a taxa de escolarização é de 82,7% da população entre 4 e 5 anos. Em 2013, era de 81,4%. Houve avanço, porém ele foi muito pequeno. E o pior: a tendência é ruim.

Para o cumprimento da meta de educação infantil do PNE e da demanda constitucional, entre 2015 e 2016, o país precisa criar cerca de 1 milhão de matrículas para crianças de 4 a 5 anos. Considerado o contexto, isso é praticamente impossível. Ainda mais se forem contabilizados os prejuízos decorrentes do corte orçamentário de R$ 3,4 bilhões, empreendido nesse ano, sobre programas do governo federal dedicados à construção de equipamentos de educação infantil, em convênio com municípios.

Dos 15 aos 17 anos, em 2014, a taxa de escolarização foi de 84,3% da população nesta faixa-etária. Será preciso criar, novamente, mais de 1,5 milhão de matrículas. O que reforça a tendência de descumprimento de metas do PNE relativas à etapas do ensino fundamental e ensino médio.

Conforme compromissos firmados no programa internacional Educação para Todos (EPT) e, novamente, no PNE, o país deveria ter 93,5% de sua população alfabetizada até 2015. Em 2014, 91,7% das pessoas com 15 anos ou mais eram alfabetizadas. Como a taxa de alfabetização melhorou apenas 0,3% entre 2013 e o ano passado, a tendência – mais um vez – é de descumprimento da meta de Educação de Jovens e Adultos do PNE, além do Brasil não cumprir com a referida meta do EPT. Em 2014, 13,2 milhões dos jovens e adultos brasileiros eram analfabetos.

Ao observar esses dados, a sociedade brasileira não pode cometer o erro de pensar apenas no descumprimento de metas e compromissos legais. É preciso ter consciência de que o direito à educação de milhões de crianças, adolescentes, jovens e adultos está sendo desrespeitado. Ademais, os dados refletem um fato inconteste e vergonhoso: o Brasil está distante de priorizar e compreender a relevância da educação. É urgente a necessidade de mudar esse quadro.


Países aprovam marco de ação para a educação global

Daniel Cara

PARIS – Os Estados Nacionais acabaram de aprovar, durante a 38ª. Conferência Geral da Unesco, realizada em Paris, o Marco de Ação para o programa “Educação 2030”.

O documento determina uma arquitetura mundial para a avaliação e o monitoramento das metas globais para a educação no período compreendido entre 2015 e 2030.

A base do texto é a Declaração de Incheon, consagrada em maio de 2015 durante o Fórum Mundial de Educação, realizado na Coréia do Sul. Ela estabelece sete metas globais para a área.

Clique e conheça a Declaração de Incheon traduzida para o português

A Declaração de Incheon traduz o acordo da comunidade internacional em torno das políticas educacionais. Os avanços do texto foram fruto do protagonismo da sociedade civil, capitaneada pela Campanha Global pela Educação e pela Internacional da Educação – que reúne os sindicatos dos professores ao redor do mundo. Ambas as organizações contaram com o apoio dos países do Grulac (América Latina e Caribe). A principal queda de braço se deu com o grupo anglo-saxão – liderado pela delegação dos Estados Unidos (EUA) –, e que contou com forte adesão de países da União Européia, além do Japão e de outros países asiáticos.

Metas – Entre as sete metas definidas estão a educação primária e secundária pública e gratuita de, no mínimo, 12 anos – com 9 anos de educação compulsória. Há ainda a exigência para a oferta de educação infantil gratuita.

A principal polêmica esteve relacionada exatamente à gratuidade e à oferta pública do ensino. Alguns países liderados pelo bloco anglo-saxão, em conjunto com o setor privado da área, mobilizado por fundações empresariais, queriam permitir parcerias público-privadas viabilizadas pela cobrança ou compra de matrículas. Não foram vitoriosos, porém sua influência sobre os organismos internacionais está em ascensão.

Direito à aprendizagem – Embora tenham sido derrotados no âmbito da oferta educacional, as fundações empresariais e o bloco anglo-saxão conseguiram fazer avançar a agenda do “direito à aprendizagem” em detrimento do direito à educação. E persistirão nessa agenda.

Embora o aprendizado seja o objetivo central da ação educativa, devendo ser o compromisso essencial dos educadores, alça-la à condição de direito resulta no enfraquecimento do processo de ensino-aprendizagem, especialmente no âmbito da valorização docente.

Seus defensores pressupõem que o aprendizado deve ser alcançado de qualquer modo, sem considerar como primordial as condições das escolas e o respeito à profissão do magistério. Os resultados práticos dessa compreensão ao redor do mundo são pífios. Nas últimas semanas, contrariando a posição das fundações empresariais estadunidenses, o presidente Barack Obama tem feito críticas duras à essa perspectiva o que é animador.

Diante desse conflito, a decisão sobre os indicadores do “marco de ação” ficou para março de 2016. Em jogo está a predominância ou não de testes padronizados de larga escala como meio de aferição das metas globais. Haverá ainda uma longa disputa em curso.

Brasil – O Brasil está representado em Paris por uma delegação chefiada pelo Ministro de Estado da Educação, Aloizio Mercadante. Em Incheon foi representado por uma delegação plural, liderada pelo então titular da pasta, Renato Janine Ribeiro.

Integrei a delegação oficial em Incheon, como representante da sociedade civil brasileira. Em Paris integro a delegação da Campanha Latino-americana pelo Direito à Educação, no âmbito da Campanha Global pela Educação. Estou acompanhado de Carlos Eduardo Sanches, membro – como eu – da Campanha Nacional pelo Direito à Educação do Brasil.


Há eleitores no meio do caminho das disputas políticas atuais

Daniel Cara

O Brasil é um país de ideias únicas.

Entre 1994 e 1998, o modelo de gestão liderado por Fernando Henrique Cardoso (FHC) foi hegemônico.

Com a missão autoatribuída de “virar a página do varguismo”, FHC implementou sua versão de neoliberalismo, capaz de conviver com a ideia inaceitável de que milhões de brasileiros eram “inimpregáveis” – ou seja, não conseguiriam emprego. Como o Plano Real conseguiu domar a inflação – a um enorme custo social, diga-se de passagem –, o ex-presidente estabeleceu um legado vigoroso, capaz de lhe permitir duas vitórias eleitorais em primeiro turno (1994 e 1998), ambas contra Lula.

O declínio de FHC começa no início de seu segundo mandato, logo após contrariar suas promessas eleitorais e tomar medidas para a desvalorização do real. De sua queda, emergiu o lulismo.

A emergência do lulismo

Vitorioso a partir das eleições presidenciais de 2002 – quando ainda era um projeto –, o lulismo é, basicamente, um modelo de equilíbrio. Consiste em um jogo contínuo de negociação, no qual o Palácio do Planalto exerce a função de balança, buscando melhorar as condições de vida da população, porém sem ferir os interesses do capital.

Nesse jogo, de um lado estão as elites econômicas e políticas do país e, do outro, os sindicatos e movimentos sociais. Para dar certo, nenhum desses polos de poder pode ter a capacidade de impor sua vontade. Quando necessário, o governo deve ser capaz de, em alguma medida, atender as demandas ora de um lado, ora do outro. É um sistema capaz de promover avanços sociais inegáveis, mas incapaz de implementar as reformas necessárias.

Estruturalmente, o lulismo não rompeu com o modelo administrativo de FHC. Em muitas áreas, como a educação, se mantiveram as bases do gerencialismo. Porém, seu inegável mérito foi não aceitar ideias elitistas e fatalistas, como a dos “inimpregáveis”. Como resultado, como nunca antes na história do Brasil, oportunidades foram democratizadas – e esta frase está tão batida quanto é verdadeira…

Dito de forma mais clara, a partir do governo Lula, uma série de políticas públicas foram aperfeiçoadas ou criadas. E é evidente que elas melhoraram as condições de vida das camadas C, D e E.

Ao saber aproveitar o cenário internacional, o governo Lula tomou medidas econômicas necessárias para melhorar os salários e facilitar o consumo. E o Brasil provou que FHC e seus colegas estavam errados: com um mínimo de comprometimento político, ninguém é “inimpregável”; o país praticamente alcançou o pleno emprego.  Em 2010, as linhas de montagem produziram mais – especialmente a automotiva –, o comércio vendeu mais, a população comprou mais. Em algum nível, todos pareciam estar ganhando.

A expansão das oportunidades de escolarização

Na educação, o Prouni e o Fies subsidiaram e financiaram a expansão de vagas no ensino superior, mesmo sendo ofertadas matrículas de péssima qualidade. Nunca as faculdades particulares se tornaram tão acessíveis e populares, porém sem a devida preocupação pedagógica.

Por outro lado, foram meritórios a expansão e o fortalecimento do ensino superior público, mantendo no fio da navalha o jogo de equilíbrio: atender, da melhor forma possível, os interesses dos empresários da educação, sem deixar de lado a demanda dos sindicatos e movimentos sociais, que reivindicavam (e reivindicam!) a expansão pública.

A sensação de que quase todos estavam ganhando com o lulismo foi duradora, sendo capaz de dar ao PT duas vitórias eleitorais consistentes: 2006 e 2010 – em 2002 o modelo ainda não estava estabelecido.

Foi entre 2006 e 2012 que o lulismo ascendeu ao patamar de pensamento único – o que nunca é bom. E a oposição ficou relegada a um papel constrangedor de tão pequeno.

Porém, as jornadas de junho de 2013 prenunciaram o esgotamento da lógica lulista. Novos personagens tomaram as ruas, que deixaram de ser uma exclusividade dos sindicatos e movimentos sociais identificados com os partidos da centro-esquerda brasileira. Concomitantemente, cresceu o desgaste de Dilma Rousseff perante o empresariado e as elites políticas, devido à sua indisposição em manter o jogo de equilíbrio. Ora a presidenta agiu por coragem – como no caso da redução da taxa de juros –, ora por espontaneísmo. Especialmente, a falta de traquejo com o Congresso Nacional corroeu o modelo. Como resultado, as eleições de 2014 foram apertadas, ainda que a maioria do eleitorado tenha preferido manter no poder um governo que prometia preservar as políticas sociais e, principalmente, o emprego e a renda do trabalhador.

A queda do lulismo

Foram a trajetória e o carisma de Lula que cimentaram o modelo de governo vigente entre 2003 e 2014. Antes de ter sua imagem abalada pelo fracasso em que se encontra o segundo mandato de Dilma Rousseff, de quem foi o fiador eleitoral, o ex-presidente era admirado por quase todo o empresariado e tinha a fidelidade da maior parte das camadas C, D e E. Embora não fosse uma referência para boa parte dos jovens que participaram das jornadas de junho, Lula ainda é o principal político do país, com forte liderança sobre muitos sindicatos e movimentos sociais. Porém, é inegável que o ex-presidente perdeu aderência discursiva e poder de aglutinação política.

Passado o tempo, ficou ainda mais evidente que o lulismo depende de seu criador em contínua posição de protagonismo. No entanto, isso não é possível com Lula fora do Palácio do Planalto. Não é à toa que boa parte do petismo, desde 2011, considera os dois mandatos de Dilma Rousseff um interregno (angustiante!) para uma nova e redentora ascensão de Lula em 2018 – sem qualquer reflexão sobre os efeitos do personalismo na política brasileira e na estrutura partidária do PT.

Mas isso se explica. Não apenas a atual presidenta, mas nenhum outro político brasileiro é capaz de reunir as mesmas credenciais e repetir a mesma narrativa do ex-presidente. Sua biografia é única. Ademais, ninguém é capaz de sustentar a negociação com os dois polos de poder do jogo lulista, sem deixar um se sobrepor ao outro.

No entanto, hoje há dúvida se o lulismo é viável em uma conjuntura política e econômica desfavorável, como a atual. Nas crises é quase impossível manter o equilíbrio do jogo. No único mercado válido para as alianças políticas, o mercado futuro, a moeda eleitoral do ex-presidente sofre forte desvalorização: os aliados fisiológicos, especialmente setores do PMDB, já duvidam da capacidade do ex-metalúrgico em permanecer imbatível no voto. Porém, não há nenhuma força política eleitoralmente hegemônica. Por isso, as eleições municipais de 2016 serão as mais relevantes das últimas décadas, com a pauta nacional se sobrepondo às questões locais – tendência inversa à verificada nos últimos anos.

Concomitantemente, alguns setores empresariais também passaram a considerar o modelo lulista desvantajoso, pois as políticas que resultaram no aumento da renda dos trabalhadores pressionaram as altíssimas taxas de lucro das empresas brasileiras. Em síntese, para eles, deixou de ser um jogo de ganha-ganha.

Ou seja, mesmo Lula, com todo seu carisma e biografia, teria dificuldade de governar hoje sob as regras do modelo que ele próprio cunhou. Os primeiros resultados colhidos pela reforma ministerial do governo Dilma Rousseff, concluída em 2 de outubro de 2015 e liderada pelo ex-presidente, reforçam essa tese. Muitos atores econômicos e políticos não vão mais se submeter ao  jogo de equilíbrio lulista. O clima da política brasileira, após os efeitos do (des)ajuste econômico liderado por Joaquim Levy e a investigação da operação Lava-Jato, é de todos contra a hegemonia do PT. Lula, mesmo permanecendo acima de seu partido perante os atores políticos e econômicos, não está incólume a esse enfrentamento. Pelo contrário. É o maior alvo.

Um “novo” pensamento único?

Em momentos de crise, como agora, é repetida à exaustão a mais citada passagem do livro “O dezoito de brumário de Luís Bonaparte”. Ali Marx sentencia: “a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”. No Brasil, ela tende a se repetir em duplicidade e unicidade: é ao mesmo tempo tragédia e farsa.

Durante as eleições de 2014, Dilma Rousseff se comprometeu a não implementar medidas ortodoxas e recessivas de ajuste fiscal. Segundo o script redigido por seu marketing eleitoral, seu coração valente jamais iria prejudicar os mais pobres, beneficiados com as oportunidades descortinadas pelas políticas públicas do lulismo.

Contudo, quando assumiu seu segundo mandato, a presidenta agiu em contrário das promessas da candidata. A história se repetiu, assim como a farsa. Em 1998, FHC prometera não desvalorizar o real frente ao dólar. Tal como Dilma agora, o ex-presidente tucano também não cumpriu com sua palavra. E o descumprimento das promessas eleitorais sempre geram efeitos mais dramáticos para a população com menor renda: rapidamente cresce o desemprego e fica ainda mais difícil o acesso a serviços públicos.

Como não há vácuo em política, um (quase) “novo” pensamento único (re)emerge no bojo da crise do modelo lulista. Porém, envolto em desfaçatez. Seu objetivo é destruir o lulismo; sua estratégia é a redução do Estado. A desculpa publicizada é o equilíbrio das contas públicas, que é necessário, mas pode ser feito de inúmeras formas. No entanto, a escolha dos reacionários tem sido pela absurda redução da cidadania. Sem qualquer noção de democracia e republicanismo, seus vocalizadores chegam a atacar até as conquistas da Constituição Federal de 1988, inclusive aqueles que sequer se materializaram.

Um novo (e tolo) mantra tem sido repetido no debate público brasileiro, inclusive em editoriais de grandes jornais: há Estado demais para PIB de menos. Não importa se isso é verdade ou não. Como também é indiferente que os direitos sociais não estejam consagrados. Além de uma certa paixão recorrente pela tragédia, o Brasil é um país excessivamente tolerante com as desigualdades. Por exemplo, muitos não se constrangem com o fato de que a maioria das crianças de 0 a 3 anos não tem acesso à creche; muito menos que estamos distantes de universalizar a pré-escola, o ensino médio e a alfabetização e escolarização básica dos jovens e adultos.

Um outro mantra é repetido pelos mal-intencionados: há tributos demais e PIB de menos. Afora o erro técnico da assertiva, não importa aos seus vocalizadores que, proporcionalmente, quem mais paga a conta são os mais pobres, justamente aqueles que têm menos acesso aos serviços públicos. O problema não é a carga tributária, mas sobre quem ela incide. Para o Brasil ser um país decente, a carga tributária pode e precisa ser maior, porém mais justa.

O pensamento único que tenta emergir é uma versão raivosa da lógica política que cunhou termos inaceitáveis como “inimpregáveis”. E para comunicar melhor seus desatinos, os reacionários têm comparado a questão pública com a gestão do orçamento familiar. A mensagem é básica: tanto em casa como no governo, não se pode gastar mais do que se tem. É uma comparação infeliz em todos os aspectos, a gestão de uma esfera complexa como o Estado é incomparável à vida doméstica. As regras da macroeconomia são outras.

Porém, se é para seguir na metáfora, caso o reacionarismo se imponha, o Brasil será uma casa com uma mãe autoritária, que escolhe quais filhos vão à escola, quais vão ao médico e quais irão comer. Não é um lar justo, tampouco feliz. Ninguém suporta viver em uma casa assim, a não ser os privilegiados das injustiças.

É preciso desconstruir esse “novo” pensamento único, antes que ele se estabeleça de vez.

Por sorte, há eleitores no meio do caminho

Porém, há um bom limite para o reacionarismo: há eleitores no meio do caminho. A população resistirá, mais cedo ou mais tarde, em dar seu voto a quem pretende reduzir seus direitos e tomar medidas que geram desemprego.

Nas eleições municipais de 2016, caberá ao eleitor decidir se irá votar em candidatos que apoiam ou não um ajuste fiscal míope e recessivo, que amplia o desemprego e coíbe a expansão da educação infantil, por exemplo. Os cortes na educação minaram programas federais importantes, como o Proinfância – dedicado à construção de equipamentos de creches e pré-escolas em parceria da União com os municípios.

Já não é fácil para os políticos de partidos da base do governo justificarem o ajuste fiscal. Até mesmo porque ele está errado – quem está pagando a conta, mais uma vez, são os mais pobres. Tampouco será uma solução para o eleitor a nova versão do velho pensamento único dos anos 1990, defendido pela oposição de direita e veiculado de forma elogiosa na grande imprensa. A maioria do eleitorado já não aceita ideias elitistas como a dos inimpregáveis.

Há espaço para a emergência de um novo projeto, pautado no bem-estar social e no reequilíbrio da economia. Um projeto capaz de enfrentar a agenda de reformas estruturais impossibilitadas pelo jogo de equilíbrio lulista. Ou seja, um projeto que o supere.

O jogo está aberto. E há muitos eleitores no meio do caminho. A maioria decidirá se o Brasil deve caminhar para frente ou andar para trás em termos de justiça social. Nunca é ocioso lembrar: as jornadas de junho de 2013 exigiram transporte, educação, saúde e política cultural de qualidade. Ali emergiram novas demandas e elas impõem a necessidade de enfrentar as gritantes desigualdades nacionais. Até o momento, nenhum partido político conseguiu incorporar e propor alternativas para a materialização dessa pauta. Esse é o desafio.


Governo cede à pressão e substitui Comitê de Gênero do MEC

Daniel Cara

Por ato publicado no Diário Oficial da União, o Ministro da Educação, Renato Janine Ribeiro, substituiu o Comitê de Gênero, instituído pela Portaria Nº 916, de 9 de setembro de 2015, pelo Comitê de Combate às Discriminações, estabelecido pela Portaria Nº 949, de 21 de setembro de 2015. O Comitê de Gênero contava com significativo apoio da comunidade educacional.

A medida é resultado da pressão empreendida pela Frente Parlamentar Evangélica (FPE) sobre o Palácio do Planalto. No tocante às questões de gênero, o Governo Dilma tem cedido desde 2011, quando proibiu a distribuição do kit anti-homofobia para as escolas públicas.

O Ministério da Educação (MEC), ao transformar o Comitê de Gênero em uma esfera dedicada ao combate a todas às discriminações, corre o risco de promover medidas e orientações vagas, imprecisas e inócuas. Enfrentará agora um clima de cerceamento, gerado pelo receio de críticas e pressões às suas iniciativas, oriundas dos setores mais conservadores da sociedade.

Estudos mostram que o machismo e a homofobia não são apenas tolerados como também são ensinados nas escolas brasileiras, resultando em agressões de diversos tipos, além de evasão escolar. A expectativa em torno do Comitê de Gênero era de que ali seriam elaboradas propostas e subsídios técnicos  para a formulação, avaliação e aperfeiçoamento de políticas educacionais voltadas ao enfrentamento da violência de gênero e à promoção da diversidade como fator indispensável para a garantia de uma educação de qualidade.

Por ser fruto de pressão política, a nova portaria cria um clima de constrangimento no interior do MEC: o Comitê de Gênero tinha sido estabelecido por meio das Notas Técnicas 18/2015 e 24/2015, redigidas no âmbito da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi). Resta saber qual será a justificativa para contrariá-las.

Dias atrás, por meio de ofício circular às secretarias estaduais e às instituições de educação superior, o MEC encaminhou a Nota Técnica 15/2015, com orientações para a garantia das condições de acesso e permanência de pessoas travestis e transexuais – e todas aquelas que tenham sua identidade de gênero não reconhecida em diferentes espaços sociais – nos sistemas e instituições de ensino.

O estudo ministerial demonstra que existem barreiras às pessoas travestis e transexuais que impedem a efetivação do seu direito à educação. Além disso, identifica que há um conjunto de discriminações que se manifestam no não reconhecimento da identidade de gênero e do nome social na realização da matrícula, prejudicando a participação desses estudantes tanto nos processos seletivos como em seu cotidiano escolar e acadêmico.

Em defesa do direito à educação, espera-se que a Nota Técnica 15/2015 não seja revogada ou substituída por uma nova redação genérica, incapaz de colaborar no enfrentamento das discriminações de gênero, tão nocivas à universalização dos direitos.


Para sair da crise econômica, o Brasil não pode produzir injustiça social

Daniel Cara

Duas verdades sobre as crises: primeiro, para esmagadora maioria da população, elas não são oportunidades – pelo contrário, são dramáticas. Segundo, para superá-las, as sociedades devem buscar alternativas justas, exigindo mais de quem pode dar mais. É exatamente o inverso do que tem sido proposto por boa parte dos formadores de opinião.

Desde o surgimento da “Agenda Renan”, uma espécie de receituário ultraliberal para salvar o combalido Governo Dilma, (re)emergiram vocalizadores que propõem a revisão do modelo de financiamento dos direitos sociais, especialmente os direitos à educação e à saúde – alicerçados atualmente em vinculações constitucionais obrigatórias.

A Constituição Federal de 1988 sequer cumpriu sua missão e há quem queira desconstruir seu principal mérito: o princípio republicano de que a cidadania deve ser plena e para todos no Brasil, por meio da universalização dos direitos.

No dia 13 de setembro, o economista Armínio Fraga, presidente do Banco Central durante o Governo FHC, publicou artigo intitulado “Respostas à altura da crise”. O texto é contraditório. Critica o gigantismo do Estado, exige serviços públicos de qualidade e propõe o fim de todas as vinculações constitucionais obrigatórias, em nome de um “orçamento de base zero” – o que praticamente inviabiliza o atual e insuficiente patamar de financiamento da educação e da saúde.

Armínio Fraga apresenta uma equação insolúvel: a oferta de serviços públicos de qualidade sem orçamento adequado. Caso o país embarque em suas propostas, a educação e a saúde deixarão de contar com um orçamento previsível e garantido, ainda que incapaz de consagrar adequadamente esses direitos. Curiosamente, uma das principais reclamações dos empresários é a situação de imprevisibilidade da economia nacional. Fraga parece não se preocupar em estender essa instabilidade para o setor público, prejudicando centenas de milhões de pessoas.

Mas não é difícil desconstruir a posição do economista. Relatório recente da Organização Mundial de Saúde (OMS) concluiu que o governo brasileiro destina à saúde de sua população, por ano, menos do que a média mundial – em outras palavras, falta recurso para a política sanitária. Em 2012, o Brasil investiu 7,9% do seu orçamento em saúde. A média mundial foi de 14%, sendo 16,8% para os países ricos.

Em educação não é diferente. Estudo produzido pela consultoria Gems Education Solutions, com base em dados da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), concluiu que os educadores brasileiros recebem, em média, US$ 14,8 mil por ano. Entre os países analisados, esse patamar fica apenas acima da Hungria e da Indonésia. Os autores do estudo concluem que “o Brasil deveria cuidar do salário dos professores para alcançar o objetivo da eficiência educacional”. Portanto, para ser eficiente na educação pública, o país precisa remunerar melhor seus docentes, o que – além de ser óbvio – refuta a argumentação de Armínio Fraga.

Infelizmente, a posição de Fraga encontra respaldo na visão de outros formadores de opinião, inclusive veículos de imprensa. No último domingo (13/9), a Folha de S. Paulo publicou o editorial “A última chance”. A mensagem é cristalina: a única saída para o Governo Dilma é contrariar sua base eleitoral e assumir radicalmente a ortodoxia econômica, haja vista que a presidenta já caminhou a passos largos nesse sentido.

O fracasso da primeira leva de ajuste fiscal promovido por Joaquim Levy sequer foi problematizado pelos editorialistas. Se a opinião pública seguir essa toada, o Brasil voltará a ser um país de receituário único. E a socialização dos custos prejudicará apenas a parcela com menor renda da população.

O mais preocupante trecho do editorial “A última chance” trata do financiamento dos direitos sociais. Diz o texto: “as circunstâncias dramáticas também demandam uma desobrigação parcial e temporária de gastos compulsórios em saúde e educação, que se acompanharia de criteriosa revisão desses dispêndios no futuro”.

Traduzindo em miúdos, diante da crise, direitos básicos devem ser sacrificados. A falta equipamentos de saúde e o insuficiente o acesso à educação parece ser secundário. Importa muito menos que esses serviços públicos careçam – desde sempre – da necessária qualidade.

Não é aceitável que o único caminho para rearranjar a economia do país seja sacrificar, como sempre, aqueles que mais dependem da ação do Estado. Não é digno que um país, vergonhosamente desigual como o Brasil, assuma que é possível produzir e reproduzir um pouco mais de desigualdade para recuperar sua economia.

Ontem, no texto “A hora e a vez do MEC”, a Folha de S. Paulo incorreu em erro. Atribuiu exclusivamente ao Plano Nacional de Educação 2014-2024 (PNE) a meta de universalização da pré-escola em 2016, como se ela não fosse justa.

Desde 2009, o acesso à pré-escola é um direito constitucional subjetivo. Portanto, trata-se de um dever do Estado e uma responsabilidade da família. Organismos internacionais apoiam a medida, afora pesquisas longitudinais sobre aprendizagem e escolarização: quem tem acesso à pré-escola tende a ter melhor trajetória educacional.

A universalização da pré-escola, para crianças de 4 a 5 anos, está inscrita no inciso primeiro do artigo 208 da Carta Magna, por meio da Emenda à Constituição 59/2009. Ou seja, o PNE apenas reiterou o que já estava estabelecido há seis anos. Sem dúvida, um bom prazo para a necessária expansão das matrículas – que não ocorreu. Essa deveria ser a crítica dos editorialistas da Folha de S. Paulo, inclusive problematizando as causas, como o subfinanciamento da educação infantil somado à baixa disposição do Governo Federal em participar da solução do problema.

Não há dúvida de que é necessário um ajuste para que, em breve, seja retomado o crescimento econômico no país. Diante desse fato concreto, o único caminho justo é que a maior parte da conta seja paga por quem tem mais condições de saldá-la: a elite econômica brasileira – que aliás, proporcionalmente, paga muito menos tributos do que a camada com menor renda.

Ao fim e ao cabo, tudo se resume a uma opção entre o combate sincero e árduo às desigualdades contra um receituário ortodoxo, que ampliará as iniquidades brasileiras. Não deveria haver dúvida sobre o caminho trilhar. A solução de uma crise econômica não pode resultar em (mais) injustiça social.


Desafios para implementação da Base Nacional Comum Curricular

Daniel Cara

O Ministério da Educação (MEC) lança hoje sua proposta para a Base Nacional Comum Curricular. O instrumento é demandado pelo artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 e por estratégias do Plano Nacional de Educação (PNE), primordialmente relacionadas ao ensino fundamental, ensino médio e à formação dos profissionais da educação.

Ainda há questionamentos acerca da necessidade ou não de uma Base Nacional Comum Curricular. Partindo do pressuposto básico e republicano de que as leis devem ser cumpridas, construir e implementar a Base é uma obrigação dos governantes. Aliás, desde 1996.

Diante disso, o problema central recai sobre a qualidade da Base. Para dar certo, qualquer instrumento curricular deve ser validado por professores, formadores de professores e pelo conjunto majoritário da comunidade educacional. Caso contrário, tende a virar letra morta ou mecanismo pouco relevante, ficando restrito a orientar a produção de livros didáticos e materiais pedagógicos. Isso não é pouco, porém é insuficiente – haja vista os casos dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) do governo FHC e as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) do governo Lula.

Para lançar sua proposta, a Secretaria de Educação Básica do MEC convocou e coordenou diversos grupos de trabalho, envolvendo Estados e Municípios, professores e pesquisadores. É inegável o esforço. Contudo, há críticas sobre a representatividade do coletivo e a abrangência da proposta. Em que pese a iniciativa, atores relevantes não foram envolvidos, especialmente influentes na formação de professores.

Foi um erro. E, caso não seja corrigido, trará alto custo para a implementação do instrumento. Ainda há tempo de aprimorar o processo, inclusive envolvendo de forma mais concreta outros pesquisadores, professores, sindicatos, conselheiros e gestores públicos. Será necessária, para isso, maior capacidade de negociação por parte do MEC, disposição para o estabelecimento de consensos básicos (mas difíceis) e o reconhecimento pragmático sobre a forma como se estrutura a política de educação no Brasil: qualquer iniciativa exige legitimação ampla. Caso contrário, pode até gerar alvoroço na opinião pública, mas não chega à ponta (escolas ou redes públicas) ou se mantém relevante para o cotidiano escolar, tendo morte prematura. Um bom exemplo disso foi o fim silencioso do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) do então Ministro, Fernando Haddad.

O maior erro dos governantes em matéria educativa é desconsiderar um princípio simples e prático: não há universalização de uma política educacional, especialmente no âmbito curricular, sem a legitimação dela pelos professores que atuam em sala de aula. E isso não se faz por medidas tecnocráticas, por arranjos sociais, econômicos e políticos ou pelo apoio da imprensa – até porque ele é instável. O único caminho efetivo em educação é envolver representações da comunidade educacional na formulação da política. É difícil, porém é o único percurso possível – sendo, portanto, o mais pragmático.

Segundo o PNE, a Base Nacional Comum Curricular tem até junho de 2016 para ser definida. Ainda há tempo de corrigir rumos. E é possível e desejável aproveitar o trabalho feito até aqui e aprimorá-lo, tornando-o capaz de ser efetivo.


Agenda Brasil: a educação pública não está bem, mas pode ficar pior

Daniel Cara

Em 1994, Fernando Henrique Cardoso criou o “Fundo Social de Emergência”. Embora o nome pudesse sugerir algo positivo – um fundo de emergência para a área social, por exemplo –, a medida extraía 20% dos recursos constitucionais dedicados ao financiamento de direitos, como a educação. Naquele momento, a grande imprensa e quase todos os agentes econômicos brasileiros apoiaram a medida. O argumento era a sustentabilidade do Plano Real. Desde então, o mecanismo permanece vivo. Em 2000 ganhou o nome de Desvinculação de Receitas da União (DRU).

Em 2009, uma das mais importantes ações de Lula foi sustentar o fim da incidência da DRU na educação, em apoio à pressão da comunidade educacional. Para não desequilibrar as contas públicas, foi negociada uma revinculação gradativa até 2011. Desde 1994, a área perdeu cerca de R$ 80 bilhões com o mecanismo. Contudo, a incidência da DRU para as políticas públicas educacionais nunca esteve tão próxima de retornar.

Nos últimos dias, o tema foi retomado. Deve-se à “Agenda Brasil” – ou a “Agenda Renan” – o retrocesso. Ele consta nas entrelinhas da proposta. As conquistas da Constituição Federal de 1988 sempre incomodaram parte da elite econômica brasileira. A Carta Magna deu centralidade aos direitos sociais e determinou que parte deles, como é o caso da educação, seja financiada por vinculações obrigatórias de receitas tributárias. O Governo Federal deve investir 18% dos impostos que arrecada na área. Estados e Municípios 25% de todas suas receitas.

Muitos encaram isso como injusta imposição. O argumento mais repetido pelos adversários das vinculações constitucionais é uma suposta liberdade que os governos devem ter na implementação de sua agenda. Quando mais sinceros, alguns chegam a assumir que um dos principais compromissos de um governante deve ser o pagamento de dívidas – estabelecidas em contratos muitas vezes injustos; porém, isso não importa.

Desconheço alguma prioridade pública superior à garantia de direitos fundamentais como a educação e saúde. Também discordo da concessão de liberdade total aos gestores, considerando a tradição de descontinuidade, corrupção e permissividade que marca a administração pública brasileira.

Mas a verdade é que o tema avança, quase sem constrangimento. E o pior, com o recrudescimento da crise econômica, a ideia vai ganhando corpo e novos defensores. O dramático é que as vinculações constitucionais são imprescindíveis, porém insuficientes para universalizar o direito à educação básica pública com qualidade. É preciso mais recurso, especialmente para remunerar de maneira condigna os profissionais do magistério.

Diante da crise econômica, membros do governo federal já defendem a necessidade de criar meios para cortar despesas obrigatórias. Joaquim Levy tem sido o fiador da proposta. Por sorte, não se trata de voz onipresente na Esplanada dos Ministérios. Ainda assim, é preciso que seus colegas saiam do conforto dos bastidores e se manifestem em público, especialmente os titulares das pastas sociais – estranhamente, os mais silenciosos do Planalto Central.

Se não bastasse o ajuste fiscal recessivo, que diminui a renda da população e asfixia a manutenção de postos de trabalho, o povo ainda corre o risco de perder serviços públicos existentes – mesmo sendo de baixa qualidade.

Muitos analistas defendem que a ''Agenda Renan'' é uma espuma, uma forma de tirar o foco da crise política. Outros apostam que ela nunca prosperará, devido à fragmentação partidária no Poder Legislativo Federal. O que se sabe é que ela manifesta o interesse de setores poderosos da sociedade, que já não demonstram vergonha em defender a secundarização dos direitos sociais. Para eles, é preciso defender a todo custo a política de ajuste fiscal em vigor, que favorece essencialmente o mercado financeiro. Não importa se a implementação do programa econômico de Joaquim Levy resulte em um grave refluxo de conquistas constitucionais, obtidas com muito esforço em 1988.

Por prudência, é fundamental que os cidadãos e os movimentos sociais pressionem, desde já, o Governo Federal e o Congresso Nacional para que não patrocinem e permitam tão grave retrocesso. Caso contrário, o Brasil ficará ainda mais distante de ofertar educação pública de qualidade. Aliás, muito mais distante do que se encontra hoje.

O risco é do país andar para trás. Ao que parece, já está andando.


A educação vai virar pauta bomba

Daniel Cara

Os direitos sociais precisam ser ampliados. Porém, não é isso que está sendo gestado no Brasil, com o ajuste fiscal de Joaquim Levy e a ''Agenda Brasil'' de Renan Calheiros. Investir na consagração direitos logo vai ser encarado como a proposição e preparação de pautas bomba.

Logo após as eleições de 2014, argumentei que as políticas educacionais tinham colaborado para a vitória de Dilma Rousseff. Democratizar a escolarização fideliza o eleitorado. O fenômeno é antigo, sendo observado empiricamente desde 1930 no Brasil, a partir dos trabalhos de Celso Beisiegel (USP).

Embora a escolarização não signifique necessariamente ascensão social, é certo que ela é um instrumento promissor para a melhoria da renda e das condições de vida das famílias.

A Pátria Educadora

No primeiro dia de seu novo governo, a presidenta Dilma Rousseff surpreendeu a todos, anunciando “Pátria Educadora” como lema de seu segundo mandato. A expectativa da comunidade educacional foi alta: a “Pátria Educadora” deveria significar a contribuição do segundo governo Dilma para o cumprimento do Plano Nacional de Educação (PNE). O PNE estabelece 20 metas capazes de fazer o Brasil avançar na consagração dos direitos educacionais da população. Mas, para isso, Dilma Rousseff precisava mudar sua opinião sobre o plano.

O PNE foi sancionado em 25 de junho de 2014. O texto tramitou por quase quatro anos no Congresso Nacional e foi aprovado por todos os partidos, sem exceção. Contudo, como o Palácio do Planalto foi derrotado em temas importantes, como a transferência de recursos da União para Estados e Municípios. Incomodada, a presidenta Dilma Rousseff analisou até o último minuto se apresentava ou não vetos ao texto. Por prudência, recuou.

Embora tenha demorado para decidir, Dilma acabou compreendendo que seus vetos seriam derrubados, inclusive com votos do PT – um dos partidos mais ativos na construção do plano. A democratização das oportunidades educacionais, um dos pilares do PNE, é um direito e um tema caro ao eleitor. Isso foi comprovado pelas pesquisas qualitativas antes e depois do segundo turno da disputa presidencial, reforçando o fenômeno de reciprocidade entre expansão de matrículas e voto.

As contradições da Pátria Educadora

Após o anúncio do lema “Pátria Educadora”, o governo Dilma Rousseff contou com três Ministros da Educação: Cid Gomes, Luiz Cláudio Costa (interino) e Renato Janine Ribeiro – que até o momento permanece no cargo. Em dezenas de discursos feitos desde o início de seu segundo mandato, a presidenta mencionou o plano pouquíssimas vezes. Nunca com a profundidade merecida e necessária.

Ao invés de se dedicar ao cumprimento do PNE, a sociedade e o governo dispenderam um tempo precioso discutindo o texto “Pátria educadora: a qualificação do ensino básico como obra de construção nacional”, assinado pela Secretaria de Assuntos Estratégicos, chefiada pelo Ministro Roberto Mangabeira Unger.

Como resultado, com um mínimo de rigor, nenhum dispositivo do PNE previsto para ser implementado até 24 de junho de 2015 foi cumprido. A tendência é que o mesmo ocorra no próximo ano, quando vence o prazo para diversos outros dispositivos.

Entre esses, um dos mais desafiadores, é o cumprimento das metas de universalização do acesso para a população de 4 a 17 anos. Em termos quantitativos, isso significa criar 2,8 milhões de vagas em poucos meses.

O desafio, que já não era pequeno, ficou quase impossível. O ajuste fiscal de Joaquim Levy gerou cortes profundos na área. Em uma primeira rodada, R$ 9,2 bilhões foram suprimidos do orçamento do Ministério da Educação (MEC). Desse total, R$ 3,4 bilhões (37%) seriam destinados exatamente para a construção de unidades de educação infantil. Isso praticamente inviabiliza o cumprimento da meta de universalização da pré-escola (4 a 5 anos de idade), demandada tanto pelo PNE como pela Constituição Federal, após a Emenda 59/2009.

Ainda no corte de R$ 9,2 bilhões, outro R$ 1,9 bilhão (21%) asfixiou o investimento em obras em universidades e institutos federais, o que prejudica seriamente o cumprimento da meta de criação de 2 milhões de matrículas públicas no ensino superior até 2024.

Tanto a expansão de creches e pré-escolas como a criação de matrículas no ensino superior foram compromissos firmados por Dilma Rousseff na campanha eleitoral de 2014. Se tudo continuar como está, ambos não serão cumpridos.

Os direitos educacionais são pautas bomba

Em raciocínio oposto ao que está em voga, para construir equipamentos educacionais correspondentes a um padrão mínimo de qualidade, seria preciso investir cerca de R$ 13 bilhões para matricular todos os brasileiros de 4 a 17 anos que estão fora da escola. Ou seja, ao invés de extrair R$ 3,4 bilhões do orçamento do MEC, o Governo Federal deveria ampliá-lo.

Mas como tudo o que se opõe ao ajuste fiscal de Joaquim Levy é taxado de pauta bomba, a educação não foge a regra: precisa com urgência de mais recursos.

Porém, em caminho oposto ao da promoção dos direitos educacionais, o Governo Federal anunciou – no fim de julho – um corte adicional de R$ 1 bilhão na área, totalizando R$ 10,2 bilhões.

A emergência da ''Agenda Brasil''

Todos os direitos sociais são pautas bomba. Não é a toa que a ultraliberal “Agenda Brasil” de Renan Calheiros, que faria corar de vergonha muitos tucanos, busca desconstruir a universalização do Sistema Único de Saúde (SUS) e a vinculação constitucional que financia a educação, que é considerada onerosa.

Segundo matéria do Valor Econômico, Joaquim Levy disse em reunião da OCDE em Paris que a educação estava protegida de cortes. Ao ser lembrado por jornalistas que a área tinha sido a mais afetada por sua política de ajuste fiscal, não teve pudor para assumir sua posição: “convenhamos, nós temos vinculações constitucionais na educação que obviamente estão sendo cumpridas e eu acho que isso é que o indicador”.

O ministro parece ter se esquecido do fato de que o que é constitucional ninguém pode tocar. Talvez por isso tenha se entusiasmado tanto com a “Agenda Renan”, certamente um nome mais apropriado ao conjunto de propostas do que “Agenda Brasil”.

Qual é o golpe?

Gera muita preocupação as tentativas de apear Dilma Rousseff do Palácio do Planalto. Se isso ocorrer, será um grave retrocesso institucional para o Brasil e uma mácula indelével para uma democracia ainda recente.

Contudo, outro perigo assola o país, o do refluxo de conquistas estabelecidas na Constituição Federal de 1988. Manter essas conquistas deve ser a preocupação primordial de qualquer cidadão brasileiro. Deveria ser também do emparedado Governo Federal, mas o gabinete de Dilma Rousseff não demonstra poder de reação suficiente para propor e implementar uma agenda. Especialmente àquela para a qual a presidenta foi reeleita.

É preciso unir forças contra os retrocessos. Se acertar na pauta, o dia 20 de agosto será uma grande oportunidade.

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Atualização: publiquei esse texto na madrugada de hoje. Logo pela manhã, leio matéria assinada pelos jornalistas Valdo Cruz e Gustavo Patu na Folha de S. Paulo. O texto informa que ''por meta de 2016, Dilma discute até corte de despesas obrigatórias''. São elas a salvaguarda para o financiamento dos direitos sociais, especialmente educação e saúde. A preocupação dos cidadãos deve ser redobrada. Caso se confirme, é a pior notícia que um governo eleito com um programa de centro-esquerda poderia dar. O mercado está conseguindo impor – definitivamente! – sua agenda.