Blog do Daniel Cara

Secretários do Norte exigem participação do Governo Federal na Amazônia

Daniel Cara

Pela primeira vez, os secretários estaduais de educação do Norte decidiram revelar, para todo país, a necessidade de recursos para garantir o direito à educação naquela região.

Em Carta publicada hoje (11/8), redigida em Manaus, eles defendem que além do padrão mínimo de qualidade nacional – a ser instituído por meio do Custo Aluno-Qualidade Inicial (CAQi) –, é preciso constituir um fator amazônico adicional. É um grande acerto.

Leia aqui a “Carta dos Secretários Estaduais de Educação da Região Norte – Por um sistema nacional de educação efetivo: com padrão mínimo de qualidade nacional, complementado pelo fator amazônico”

Três aspectos chamam a atenção no documento. Em primeiro lugar, os secretários exigem que os cidadãos da região Norte tenham condições iguais de acesso e permanência na escola, como preconiza a Constituição Federal. Ou seja, se a unidade escolar de um paulistano terá biblioteca, a de um manauara também deverá ter.

Ao compreender isso, não embarcam na tese de alguns de que é aceitável dar menos a quem já tem menos, sob a alegação de que o custo de vida na Amazônia é mais barato do que no Sudeste do país, por exemplo.

Também discordam que é possível abrir mão de alguns insumos (essenciais!) para o processo de ensino-aprendizagem – como laboratórios de ciências – em escolas indígenas, quilombolas e ribeirinhas. Inevitavelmente, esse seria o resultado do rebaixamento ou simplificação do padrão mínimo de qualidade comum a todo país.

Sempre é preciso lembrar e insistir: a cidadania é um atributo nacional. É evidente que há diferenças regionais no Brasil, o que inclusive alimenta a riqueza cultural e histórica do país, mas também expressa desigualdades. Assim, independentemente do local de nascimento ou moradia, todos brasileiros têm direito a escolas públicas que sejam capazes de garantir que os professores ensinem e os alunos aprendam.

Nunca é ocioso lembrar que o Piso do Magistério, por exemplo, é nacional. Bem como o salário mínimo. E isso ocorre porque é preciso determinar referenciais para todos os trabalhadores brasileiros, em patamar de igualdade.

Em segundo lugar, de forma acertada, a Carta publicada hoje reforça a tese do Custo Aluno-Qualidade Inicial (CAQi). Ele deve ser implementado até 24 de junho de 2016, segundo o Plano Nacional de Educação (PNE) – Lei 13.005/2014.

O CAQi é um mecanismo proposto e criado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Sua formulação foi iniciada em 2002, um ano antes de começar o primeiro mandato do ex-presidente Lula.

O objetivo do CAQi é materializar o direito de todos os alunos a estudar em escolas públicas com professores condignamente remunerados, estimulados por uma política de carreira, formação continuada, lecionando para turmas com o número adequado de alunos. Além disso, todos os espaços educacionais devem ter bibliotecas, laboratórios de ciências e de informática, quadras poliesportivas cobertas e acesso à Internet de banda larga.

Isso não significa padronização excessiva ou engessamento, como alguns dizem. Pelo contrário! Caso o CAQi seja implementado na sua integralidade, pela primeira vez, qualquer escola pública brasileira terá condições de realizar a sua proposta pedagógica.

Conforme o que está estabelecido pelo PNE, o CAQi deve ser viabilizado com a participação financeira do Governo Federal. Isso deve ocorrer em nome da justiça federativa. No ano passado, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) produziu dados sobre o financiamento da educação, por requerimento do Senador Randolfe Rodrigues (PSOL-AP). Em 2012, a cada R$1,00 investidos em educação pública, a União colocou apenas R$0,18, cabendo aos Estados uma participação de R$0,40 e aos Municípios, R$0,42. Só que o Governo Federal é, de longe, o que mais arrecada mas – como visto! – o que menos colabora.

Em terceiro lugar, a Carta demonstra que a Amazônia determina desafios logísticos diferenciados. O CAQi, que por definição é nacional, deve ter seu valor suplementado por um fator amazônico.

Isso é necessário porque a região Norte tem alguns custos 10 vezes maiores do que os do restante do país. Por exemplo, apenas para investir e mobilizar uma obra no Estado do Amazonas (contratar e deslocar equipes, adquirir e transportar materiais e instrumentos de trabalho), é preciso investir R$ 500 mil, em média. Em São Paulo, esse custo é de R$ 50 a R$ 75 mil. Os desafios logísticos em uma região de floresta são imensos. Deslocar professores, inclusive, é outra questão complexa – para citar apenas duas.

Considerando a urgência, em especial devido aos graves indicadores sociais e educacionais da Amazônia, os secretários solicitam – de imediato! – repasses diferenciados nos programas federais já existentes. Sobretudo pelo fato de que o CAQi ainda não está implementado. Tampouco o fator amazônico complementar.

Sem tergiversar, a Carta da região Norte ensina que é preciso alcançar um patamar nacional de qualidade na educação, por meio da melhoria das condições de oferta do ensino, com equidade.

E, para tanto, o texto mostra que é imprescindível considerar os desafios específicos de cada canto do Brasil, como a Amazônia ou o semiárido nordestino. Esses locais necessitam de alguns repasses diferenciados, complementares aos valores nacionais de referência. Não será fácil, mas é o justo. Esse é o caminho para rever e implementar um pacto federativo consistente, basilar para um Sistema Nacional de Educação (SNE) efetivo.

Boaventura de Souza Santos ensina que “temos o direito de ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito de ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades.”

Ou seja, o primeiro passo deve ser o da igualdade, estabelecida pelo CAQi: todos cidadãos devem ter direito a um padrão nacional e inicial de qualidade na educação. Com isso, as diferenças deixarão de adubar as desigualdades. O segundo passo deve ser o dos fatores complementares, como o amazônico, o do semiárido, etc.

O que se quer, como fica evidente, é interromper o círculo vicioso atual, em que a regionalização permanece fornecendo água ao moinho das desigualdades brasileiras.


Subterfúgios para evitar o cumprimento da Lei do Piso e da LDB

Daniel Cara

Pelo Brasil afora, alguns governadores e prefeitos buscam meios para subcontratar educadores. Como sempre, o prejuízo é dos estudantes. Nos últimos dias chama a atenção os casos de Foz do Iguaçu e Palmas.

Na educação infantil é mais comum o descumprimento da LDB

O equívoco é mais recorrente na educação infantil. Para evitar concursos públicos de professores para creches e pré-escolas, algumas prefeituras realizam processos seletivos para “auxiliares de educação infantil”, “agentes auxiliares de creche” e outras nomenclaturas. Como formação, é exigida escolaridade em ensino fundamental.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) é clara. No primeiro inciso do artigo 61 afirma que os professores devem ser habilitados em ''nível médio ou superior''. Ou seja, não cabe concurso de educadores, com as mesmas tarefas e atribuições de docentes, mas tendo o ensino fundamental como exigência de formação. O resultado é que esses profissionais não recebem o piso do magistério, que hoje é de R$ 1.917,78 para uma jornada de 40 horas, não participam de processos de formação continuada e não tem progressão de carreira. Insisto: quem mais perde são os estudantes, que merecem professores com boa formação e horizonte de carreira. E isso é o mínimo necessário.

Articulados e pautados pela LDB, os “agentes auxiliares de creche” de municípios dos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Pernambuco e Paraná pressionam pela regularização de sua carreira e condições de trabalho. E essa justa mobilização vai ganhando todo o Brasil.

Foz do Iguaçu

Ontem, 14 de julho, em Foz do Iguaçu, os vereadores rejeitaram por unanimidade um projeto que previa um cargo de educador com formação em ensino fundamental como subterfúgio para a subcontratação docente na educação infantil. A vitória foi de todo o município.

O caso de Palmas

Porém, não é só na educação infantil que reside o problema. Em Palmas (TO), o prefeito Carlos Enrique Franco Amastha (PP), sancionou a Lei do Programa Educacional Salas Integradas, publicada no Diário Oficial da cidade em 3 de julho. A princípio, o objetivo é ampliar as oportunidades de educação em tempo integral. Porém, ao observar as atribuições do “monitor de desenvolvimento infantil” e do “monitor de atividade de jornada ampliada de nível 1”, fica patente que são tarefas de professores.

A contratação de ambos os profissionais será feita por “processo seletivo simplificado”, em condição temporária. Como justificativa é argumentado o “excepcional interesse público”. A remuneração será de R$ 1.000,00 por jornada de 40 horas semanais. Ou seja, muito menos do que o piso do magistério.

Não é aceitável burlar a Lei do Piso e a LDB

Não há dúvida de que as prefeituras possuem dificuldades arrecadatórias, em uma crise que se intensifica desde 2012. Também é fato de que a Lei de Responsabilidade Fiscal coíbe o investimento em educação, na medida de que inviabiliza a valorização dos profissionais da área – e isso precisa mudar. Contudo, os estudantes não podem ter seu aprendizado prejudicado pela subcontratação de educadores.

O país precisa superar sua velha toada nas políticas públicas educacionais: aqui, a imprescindível democratização do acesso à educação é sempre desacompanhada da mínima preocupação com a qualidade. O Brasil precisa compreender: o aprendizado dos estudantes depende da valorização de quem ensina. E quem ensina são os profissionais da educação que devem ser devidamente habilitados e condignamente remunerados.

Mas isso não é o pior. O fato é que o valor do piso já é baixo demais para ser driblado. Portanto, é preciso impedir o avanço desse tipo de proposta, que deve ser imediatamente revogada em Palmas.

As crianças e adolescentes merecem professores com a formação adequada, contratados por concursos públicos pautados pela LDB e com respeito à Lei do Piso. E vale ressaltar: isso é o mínimo, é obrigação, não pode ser encarado como favor ou mérito dos governantes.


O Governo, o Congresso e o futuro da educação

Daniel Cara

Desde que o Ibope cravou em 9% a aprovação do governo Dilma Rousseff, aumentaram as notícias sobre seu risco de queda. Os primeiros efeitos da crise econômica e arrecadatória chegaram, começando a corroer primeiro as condições de vida das classes E, D e C. Como política de redução de danos, ontem foi lançado o Plano de Proteção ao Emprego (PPE), uma espécie de analgésico necessário às implicações do ajuste fiscal promovido pelo Ministro da Fazenda, Joaquim Levy.

Embora a queda da economia seja o fator estrutural, sufocando um governo eleito por uma narrativa essencialmente fundamentada na expansão do consumo, os vazamentos seletivos da Operação Lava Jato, o julgamento das chamadas “pedaladas fiscais” no Tribunal de Contas da União e as sucessivas derrotas no parlamento deixam o Palácio do Planalto paralisado, evidenciando sua baixa resiliência.

A correlação de forças no Congresso Nacional

No Congresso Nacional, principalmente na Câmara dos Deputados, a situação é grave. Se a política fosse uma luta de boxe, Dilma e seu gabinete estariam nas cordas. Entre os analistas políticos (seriam apostadores?), o cálculo reside em tentar prever se a derrota será por pontos, com a presidenta completando seu mandato legal e legítimo, conquistado nas urnas, ou por nocaute. Quase ninguém considera uma virada.

Uma leitura cuidadosa da Câmara dos Deputados e das votações da semana passada desnuda o cenário. Derrotado nos primeiros minutos do dia primeiro de julho, o presidente da Casa, Eduardo Cunha, provou que é capaz de empreender qualquer manobra regimental para alcançar seus objetivos. E faz isso sem qualquer receio de desgaste perante a opinião pública.

Não é esse, porém, o recado principal. Ao forçar, em poucas horas, um segundo processo deliberativo, em uma espécie de tapetão parlamentar, Cunha e seus apoiadores provaram a extensão de sua força.

Como qualquer proposta de emenda à Constituição, a que busca reduzir a idade penal de 18 para 16 anos para crimes hediondos, exigia 308 votos favoráveis. Na primeira votação o placar apontou 303 votos, uma soma insuficiente. Porém, em uma segunda e controversa votação, o total foi de 323 votos. Ou seja, Eduardo Cunha consegue acumular a soma necessária para os projetos que exigem maioria qualificada.

O Sistema Nacional de Educação, a maioria qualificada e o futuro da educação

Por demanda da Constituição Federal e da Lei 13.005/2014, que estabelece o Plano Nacional de Educação (PNE), o Congresso tem que aprovar até 24 de junho de 2016 a Lei do Sistema Nacional de Educação (SNE).

A distribuição de recursos federativos do SNE deve estar pautada, em primeiro lugar, pelo mecanismo do Custo Aluno-Qualidade Inicial (CAQi) e, depois, pelo mecanismo do Custo Aluno-Qualidade. Caberá à União, na figura do Poder Executivo Federal, complementar os recursos necessários para Estados e Municípios viabilizarem tanto um quanto outro. No mínimo, isso deve significar R$ 37 bilhões a mais, por ano, de transferências federais obrigatórias para os governos estaduais e municipais.

Por ser demandado pela Constituição Federal e por enfrentar os nós do pacto federativo, o SNE deve ser regulamentado por legislação complementar. Ou seja, para ser aprovado, exige maioria qualificada. Isso significa dois terços dos votos dos parlamentares da Câmara dos Deputados (308 votos) e dois terços dos votos do Senado Federal (54 votos).

Se o SNE não for instituído, dificilmente o PNE terá sucesso. Um dos problemas centrais da educação nacional é a falta de organicidade de ações entre o Governo Federal, os governos estaduais e os governos municipais. Os resultados acumulados pelo Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), lançado por Fernando Haddad em 2007, comprovaram duas coisas: primeiro, os programas do Ministério da Educação (MEC) são importantes e podem ser (muito!) melhorados. Segundo: por melhor que sejam, jamais serão capazes de estruturar uma política nacional de educação.

O SNE, organizado com o objetivo de cumprir as metas e estratégias dos PNEs – conforme estabelece o artigo 214 da Constituição Federal –, é o melhor caminho para colocar as ações de todos os entes federados no mesmo trilho, com justiça federativa. Com isso, o Governo Federal deverá fazer um esforço financeiro em educação básica pública equivalente à sua capacidade arrecadatória, muito maior do que o bolo tributário acumulado pela soma arrecadada pelos 5569 municípios, 26 Estados e o Distrito Federal.

Lula e Dilma tiveram a oportunidade, mas não enfrentaram a agenda

Durante os dois mandatos de Lula e o primeiro mandato de Dilma, quando o Palácio do Planalto contou com um capital político sólido, a justiça federativa em matéria educacional não avançou. E para instituí-la não era preciso esperar a aprovação do PNE 2014-2024, atualmente em vigor. Extremamente popular, Lula sequer cogitou derrubar os vetos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ao PNE anterior, que vigorou entre 2001 e 2010. Como resultado, o primeiro plano educacional pós-redemocratização teve apenas um terço de suas metas cumpridas. O PNE atual não pode ter o mesmo resultado, sob o risco de o Brasil permanecer com muitas crianças, adolescentes e jovens fora da escola, além de manter matrículas que não propiciam um aprendizado significativo aos alunos.

O tempo corre e o PNE não avança na medida do necessário

Após uma extenuante e conflituosa tramitação, Dilma sancionou sem vetos o PNE 2014-2024, o segundo desde 1988. Mas completado um ano de vigência, muito pouco foi feito – e nada na medida do necessário!

Ao invés de se dedicar ao cumprimento da Lei 13.005/2014, expandindo matrículas, qualificando a educação básica e debatendo alternativas para a boa implementação de cada um dos dispositivos do plano, o Brasil passou o primeiro semestre de 2015 debruçado sobre o texto “Pátria Educadora”, redigido pela Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) de Mangabeira Unger. O PNE, único plano educacional aprovado por todos os partidos e construído com forte participação da sociedade civil, foi escanteado pelo Palácio do Planalto no nível federal.

Com o governo cambaleante, o futuro do SNE e – por consequência do PNE – deve ser decidido em breve pelo Congresso Nacional. Renan Calheiros, Eduardo Cunha e suas maiorias parlamentares serão atores centrais. Apenas a pressão social e uma extensa repercussão pública, fundamentadas em bons argumentos técnicos, convencerão uma ampla maioria parlamentar a instituir um Sistema Nacional de Educação condizente com as necessidades e demandas do Brasil. A comunidade educacional precisa estar preparada para fazer valer sua posição. Não será fácil.


PNE completa um ano, mas precisa sair do papel

Daniel Cara

O Plano Nacional de Educação completa hoje seu primeiro ano de vigência. A expectativa sobre o cumprimento de seus dispositivos permanece alta. Basicamente, o PNE pretende ser um primeiro e decisivo passo para que o Brasil resolva sua extensa dívida educacional. Mas é preciso encarar a realidade: mesmo se forem considerados todos os esforços empreendidos, nesse primeiro ano de vigência da Lei 13.005/2014, pouco foi feito. Em outras palavras, o que foi realizado até aqui é insuficiente.

O PNE deve ser compreendido como um patrimônio da sociedade brasileira. Não pertence a nenhum governo ou partido. Sua tramitação foi marcada por uma intensa interlocução entre sociedade civil, parlamentares e governantes. Afora a equivocada contabilização de parcerias público-privadas no investimento público em educação e a lamentável extração de instrumentos para o combate às discriminações de gênero, raça e etnia e orientação sexual nas escolas, quase tudo que está inscrito na Lei é fruto de consenso.

Diante de toda essa legitimidade, o cumprimento do PNE não deveria ser tão penoso. No entanto, não é o que acontece. Sancionado em 25 de junho do ano passado, sem qualquer cerimônia oficial, o plano ainda não recebeu a centralidade necessária.

Os primeiros meses de vigência do PNE coincidiram com o calendário eleitoral de 2014. Finalizadas as eleições, a preocupação da maior parte dos gestores públicos recaiu sobre a composição dos governos, em especial do governo federal.

O início do primeiro semestre de 2015 trouxe esperança. Na cerimônia de posse, Dilma Rousseff anunciou que o lema da sua segunda gestão seria “Brasil: pátria educadora”. No entanto, a própria presidenta passou meses sem sequer mencionar o PNE em seus discursos. Na sequência, o Ministro Roberto Mangabeira Unger lançou o documento “Pátria educadora: a qualificação do ensino básico como obra de construção nacional”, recebendo quase toda a atenção do debate educacional. O cumprimento do PNE foi secundarizado.

O tempo passou. Durante o primeiro ano de vigência do plano o país já contou com três ministros da educação: José Henrique Paim Fernandes, Cid Ferreira Gomes e Renato Janine Ribeiro. Até o momento, nem o essencial não foi feito. Não foi desencadeado sequer um processo de definição dos indicadores para avaliar o cumprimento dos dispositivos do PNE, tampouco foi divulgada uma linha de base oficial do plano – um relatório dedicado a oficializar o ponto de partida do Brasil no PNE, considerando cada uma das metas e suas estratégias.  Sem qualquer referência acordada – e ela precisa ser acordada! –, fica ainda mais evidente o descumprimento dos dispositivos.

O maior esforço empreendido até aqui recaiu sobre a elaboração dos planos estaduais, municipais e do Distrito Federal. Os planos subnacionais são fatores essenciais para o sucesso do PNE. Porém, outros dispositivos e obrigações nem sequer chegaram a ser discutidos, como a elevação da taxa de alfabetização da população com mais de 15 anos para 93,5% (meta 9) ou o estabelecimento da política nacional de formação dos profissionais da educação (meta 15) – em que pese o profícuo trabalho realizado pelo Conselho Nacional de Educação no tocante às diretrizes de formação de profissionais do magistério.

Hoje o Ministério da Educação deve anunciar a instalação de comissões e instâncias para tarefas determinadas no PNE. Para começar, três perguntas devem ser feitas: 1) Por que apenas agora? 2) Quem integrará as comissões? 3) Qual foi o processo de articulação para constituí-las? Espero que o atraso no estabelecimento desses coletivos não seja tributário daquela velha máxima da administração pública: se quer protelar algo sem resolvê-lo, crie um grupo de trabalho pouco antes do encerramento de um prazo.

O PNE foi construído a muitas mãos e para ter sucesso precisará dessas e de muitas outras. O conteúdo de sua implementação não pode ser definido em gabinetes, a portas fechadas, como tem acontecido até aqui. Até porque isso não funciona.

O Ministro Roberto Mangabeira Unger tem afirmado que a tradição do Estado brasileiro é se encastelar, não ouvir sugestões ou críticas, com o receio de alimentar oposições. Segundo ele, isso impede o fortalecimento democrático do país e das próprias políticas públicas. Concordo com Mangabeira, mas é isso que ocorre com o PNE: setores do Ministério da Educação trancafiaram o plano.

Em seu discurso de posse, o Ministro Renato Janine Ribeiro argumentou que o Brasil teve êxito em três etapas para construção de sua democracia: superação da ditadura, superação da inflação e promoção da inclusão social – segundo ele, esta última demanda ainda está inconclusa. Segundo Janine Ribeiro, a partir das jornadas de junho de 2013, ficou evidente uma quarta agenda democrática: a da qualidade dos serviços públicos.

Utilizando os termos do Ministro, é correto considerar que o PNE representa a articulação das duas últimas agendas na educação: promoção da inclusão social e busca pela qualidade da educação pública. Mas para vingar o plano depende de gestão democrática (em todas suas etapas) e prioridade orçamentária – o que tem sido impossibilitado pela incorreta política de ajuste fiscal, criticada recentemente pelo ex-presidente Lula e inúmeros economistas.

Dois manifestos recentes reiteram o que está escrito aqui. O primeiro é a Carta do XV Fórum da União dos Dirigentes Municipais da Educação (Undime). Aclamada por todos os secretários presentes, o texto seria até mais incisivo se não houvesse a cuidadosa mediação da diretoria da Undime.

O segundo documento é o posicionamento público da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, intitulado “Uma pátria educadora deve tirar o PNE do papel: primeiros prazos do plano estão sendo descumpridos”. O texto é assinado pelas 11 entidades e movimentos sociais que compõe o Comitê Diretivo da rede.

O que há de comum nos dois textos é a vontade de tornar efetivo o PNE. Eles manifestam o que é necessário ser dito ao Ministério da Educação. Mas, além disso, as duas cartas expressam também a vontade de seus signatários de participar da resolução dos problemas. Cabe agora ao MEC decidir se quer ou não abrir o debate em torno da principal lei aprovada nos últimos anos. Há apenas uma certeza: a comunidade educacional permanecerá cobrando o cumprimento do plano e exigindo participar ativamente de sua implementação. Governos passam, a sociedade fica e as leis precisam ser cumpridas, sem tergiversação. O que está em jogo são milhões de brasileiros fora da escola. E muitos outros milhões que estão dentro da escola, mas sem aprender. O PNE precisa sair do papel!


Querem levar nossas escolas para a Idade Média

Daniel Cara

No dia 10 de junho foi a vez de uma comissão da Câmara dos Vereadores de São Paulo. Porém, em todo Brasil, alguns grupos retrógrados e seus parlamentares querem evitar que as escolas e os sistemas de ensino assumam a necessidade de combater as discriminações de raça, etnia, gênero e orientação sexual. Ao seguir essa toada, o Brasil está regredindo.

Em rodas de conversa sobre educação é comum ouvir que “as escolas brasileiras são do século XIX, nossos professores são do século XX e os alunos são do século XXI”. De tão repetida, a máxima perdeu força… Mas o pior é que algumas instâncias de casas parlamentares indicam que ela está obsoleta. Querem fazer com que nossas escolas regridam à Idade Média.

Nesta semana, devido à pressão de alguns supostos defensores da família, parlamentares da Comissão de Finanças e Orçamento da Câmara dos Vereadores de São Paulo extraíram do Projeto de Lei do Plano Municipal de Educação (PME) todos os mecanismos previstos de denúncia e combate às violências e discriminações de raça, etnia, gênero e religião. Processo semelhante ocorreu com o Plano Nacional de Educação, em Brasília, no Congresso Nacional.

É preciso (re)explicar o absurdo: a Comissão de Finanças e Orçamento da Casa deixou de lado questões relevantes do financiamento da educação, sua atribuição de mérito, para deliberar sobre temas de cunho moral… E fez isso sem qualquer preocupação pedagógica.

Quem conhece as escolas – seja como familiar, profissional ou estudante – sabe que os principais temas de bullying e outras formas de violência no ambiente escolar são exatamente essas discriminações extraídas do texto do PME, somadas aos preconceitos de classe, renda e local de moradia.

Desconsiderar esse fato, sob qualquer justificativa, é inaceitável. Deixar com que a rede pública paulistana deixe de planejar e ter instrumentos essenciais para o respeito à identidade e individualidade dos profissionais da educação, dos familiares, das alunas e dos alunos é um retrocesso grave e uma decisão altamente prejudicial ao ensino e à aprendizagem dos estudantes.

Sob qualquer prisma, toda escola deve promover princípios constitucionais básicos, como a dignidade da pessoa humana, a liberdade de ir e vir e a igualdade entre homens e mulheres.

No mínimo, deve ser consenso que todas e todos têm direito à educação. Infelizmente, é fato que nossas escolas já são espaços inóspitos para gays, lésbicas, transexuais, fiéis de religiões não-cristãs, não-brancos, membros de famílias mais desfavorecidas, nordestinos – o que, reitero, é inaceitável. Nos últimos anos, a cada dia que passa, tem ficado mais evidente a falsidade do mito da tolerância brasileira. E São Paulo, embora se ache diferente, não foge à regra nacional.

Como cidadãos, ao tomar conhecimento do que ocorreu na Câmara dos Vereadores paulistana, pais gays, mães lésbicas, crianças transexuais, educadores que professam o candomblé, por exemplo, têm a consciência de que foram desconsiderados. Em última análise, uma instância da Casa parlamentar da cidade não se preocupou com suas dificuldades cotidianas como membros de comunidade escolares, quase sempre, preconceituosas. Por decorrência, sua cidadania foi desrespeitada. E isso tem acontecido por todo o país.

Em reportagem publicada na Folha de S. Paulo, a jornalista Paula Sperb escreve que procurou, mas não encontrou qualquer menção à suposta “ideologia de gênero” no PME – motivo da ira dos grupos conservadores. Não tinha e não teria. O que existia era uma preocupação em combater os preconceitos mais presentes nas escolas de São Paulo – e também do Brasil. E só. Mas isso foi suprimido.

É preciso ficar claro: não é possível aprender sem paz. Também é impossível ensinar sem ser respeitado. E é inaceitável ver o Brasil dando, a cada dia, um passo para trás.


Na possível falta de diálogo entre a SAE e o MEC, deve prevalecer o PNE

Daniel Cara

Em duas semanas, o Plano Nacional de Educação completará 1 ano de vigência. Vencerá o prazo para a realização de diversos dispositivos da Lei, mas pouco se avançou…

Não é raro por aqui, mas o debate educacional brasileiro se encontra, mais uma vez, em um lugar distante de tratar dos problemas da área.

Circulando pelo país e conversando com as pessoas é significativo o impacto do documento “Pátria educadora: a qualificação do ensino básico como obra de construção nacional”, redigido pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE), chefiada pelo Ministro Roberto Mangabeira Unger.

Por inúmeros motivos, o texto gerou contrariedade entre os membros da comunidade educacional. O documento foi capaz de organizar um discurso disperso e com o qual tenho discordância (já expressa aqui). Isso não é, necessariamente, um mérito, mas torna as posições mais claras no debate. Se isso não é algo positivo, pelo menos permite a franqueza nas discussões.

No entanto, distante de questões de conteúdo, uma das críticas mais recebidas pela iniciativa da SAE é o fato de que o Ministério da Educação não foi ouvido. Em menos de um mês, estive três vezes com o Ministro Mangabeira. Duas em eventos públicos, uma em seu escritório. Independentemente de sua visão, ele estuda a área e não foge de perguntas. Questionei diretamente esse ponto. Tanto ele como seus assessores reiteram que a encomenda é da presidenta Dilma Rousseff – ou seja, está acima de qualquer pasta. Além disso, insistem: todo o texto tinha sido debatido e acordado com Cid Gomes, ex-Ministro da Educação.

Por decorrência, é nesse momento que entra em jogo outro elemento. Por que o texto não foi debatido com o atual Ministro da Educação, Renato Janine Ribeiro? Mangabeira argumenta que não deu tempo, pois as agendas não coincidiram.

Bem abordada na coluna de Antonio Gois, publicada na última segunda-feira (8/junho) no diário “O Globo”, esse fato é certamente desconfortável. Dois ministros de um mesmo governo discutem, em perspectivas aparentemente distintas, o mesmo tema: a educação nacional. Segundo informações palacianas, isso pode ser resolvido em um encontro entre os dois, que ocorre nesta semana. Provavelmente, tenha ocorrido ontem (9/junho).

No entanto, por mais que seja necessário o entrosamento dentro da equipe ministerial, a falta de diálogo entre as duas pastas, ou seus titulares, não é algo que deveria tomar tanto a atenção pública. O problema maior é que em poucas semanas serão encerrados os prazos de alguns dispositivos fundamentais do Plano Nacional de Educação (PNE), que completará um ano de vigência.

O Brasil tem debatido o texto de Mangabeira Unger, tem criticado uma possível distância entre Janine e Mangabeira, mas dá pouca atenção ao fato de que o plano educacional verdadeiramente de Estado, debatido por quase quatro anos no Congresso Nacional e com intensa participação da sociedade civil, está em risco. E trata-se de uma Lei (Lei 13.005/2014). E essa tendência fica ainda mais evidente em um cenário inóspito de crise econômica e acirramento político.

Mangabeira diz que o PNE é uma lei arcabouço, Janine manifestou ao jornal Valor Econômico (2/junho) que a ''Pátria Educadora'' de Dilma é ''a carne para o osso do PNE''. Contudo, quase nada é dito sobre as tarefas necessárias para o cumprimento do plano. E é isso o que deve verdadeiramente preocupar a sociedade brasileira e os governos federal, estaduais, distrital e municipais.

Desafios verdadeiramente urgentes

É praticamente certo que não seremos capazes de elevar a taxa de alfabetização da população com 15 anos ou mais para 93,5% até 2015, como determina a meta 9 do PNE. Teremos muita dificuldade para criar mais de 2 milhões de matrículas até junho de 2016, com o objetivo de garantir a obrigatoriedade do ensino para todos os brasileiros com idade entre 4 e 17 anos, como abordam as metas 1, 2 e 3 do plano e exige a Emenda à Constituição 59/2009.

O Governo Federal ainda patina em sua obrigação de implementar o mecanismo do Custo Aluno-Qualidade Inicial (CAQi), com prazo máximo até junho de 2016. E o pior: devido a assessores e conselheiros ruins, insiste em não convocar a sociedade civil e pesquisadores para a tarefa – há poucos dias implantou um grupo de trabalho interno, em discordância com deliberações da Conae-2014 (Conferência Nacional de Educação). O Brasil também não terá nas duas próximas semanas uma Lei de Responsabilidade Educacional, especialmente uma boa, que não seja cópia das experiências malsucedidas nos EUA e em outros países de matriz anglo-saxã.

Além disso tudo, poucos estados e municípios criarão planos de educação verdadeiramente participativos nas próximas semanas. Em parte porque se optou por substituir o estabelecimento de fóruns de educação por comissões burocráticas. O dramático é que os planos estaduais e municipais são centrais para o sucesso do PNE.

Também não se sabe ao certo qual será a política nacional de formação dos profissionais da educação, embora o intenso e competente trabalho liderado pelo Prof. Luiz Dourado acerca das “Diretrizes curriculares para a formação inicial e continuada dos profissionais do magistério da educação básica”, realizado no âmbito do Conselho Nacional de Educação. Isso colabora, em grande parte, para a resolução da meta 15 do PNE. Mas ela não deverá ser cumprida em sua integralidade. E o prazo dela é 24 de junho de 2015.

Essas são as questões fundamentais para a agenda educacional. E mais do que ter ansiedade pelas respostas, a comunidade educacional está disposta a buscar e propor soluções aos desafios determinados pelo PNE, em interlocução com os governos. A crítica é certamente necessária. Mas tanto quanto ela é preciso construir coletivamente alternativas.

Na semana em que o PNE completa um ano (21 a 27/junho), a rede da Campanha Nacional pelo Direito à Educação promoverá a Semana de Ação Mundial 2015, com o mote “Vamos tirar as metas do papel”. Ela trará um diálogo entre as metas internacionais da educação e as metas do PNE. Em termos educacionais, não há dúvida de que esta é a questão mais relevante para o país no momento. Também é um enorme desafio, que deve mobilizar a todos e todas.


Como deve ser a educação no mundo até 2030?

Daniel Cara

A Declaração de Incheon ainda não está disponível ao público. Contudo, é possível elencar os principais pontos do texto aprovado no Fórum Mundial de Educação, ocorrido na Coréia do Sul, de 19 a 22 de maio de 2015.

O objetivo do documento é determinar referências, princípios e desafios que serão traduzidos em um macro objetivo e metas para a educação mundial de 2016 até 2030.

Em grande medida, os avanços foram possíveis graças à participação da sociedade civil em todo o processo construtivo da Declaração de Incheon.

Após extensas negociações, foi deliberado que são necessários, no mínimo, 12 anos de educação primária e secundária, dos quais 9 anos devem ser obrigatórios. Essa escolarização básica deve ser financiada com recursos públicos, devendo ser ofertada de forma gratuita e equitativa. No Brasil, a educação básica começa com a creche e vai até 17 anos, sendo a faixa-etária de escolarização obrigatória dos 4 aos 17 anos. Ou seja, temos desafios mais ousados do que o resto do mundo – o que é bom.

Embora também pareça pouco para o contexto brasileiro, graças à vibrante luta pela educação infantil por aqui, ficou decidido em Incheon que toda criança tem direito a, pelo menos, um ano de educação pré-primária de qualidade, gratuita e obrigatória.

Os países assumiram também o compromisso de enfrentar todas as formas de exclusão e marginalização, disparidades e desigualdades tanto no tocante ao acesso à escolarização como no que se refere à aprendizagem dos alunos.

A aprendizagem ficou compreendida como os conhecimentos, habilidades e valores que todos os homens e todas as mulheres – como cidadãos globais – necessitam para viver com dignidade, alcançar seu potencial e contribuir com suas sociedades.

Embora a resistência de alguns países, foi possível fazer ser reconhecida e assumida a importância fundamental da igualdade de gênero na realização do direito à educação, incluindo o compromisso dos Estados Nacionais em desenvolver e implementar políticas capazes de garantir ambientes de aprendizagem seguros.

Foi afirmado ainda um compromisso efetivo com a qualidade da educação, compreendida como condições adequadas de acesso (insumos), além do esforço dos governos para a melhoria de resultados de aprendizagem.

Para tanto, foi encarada como central a agenda de valorização do magistério, incluindo a garantia de que os professores e educadores tenham boa formação inicial e continuada, sejam adequadamente recrutados, e permaneçam motivados e apoiados social e financeiramente.

Embora alguma resistência, foi possível ser declarado que as oportunidades de aprendizagem devem acontecer e estar disponíveis ao longo da vida e não apenas para crianças e adolescentes. Em outras palavras, independentemente da idade, todos os homens e mulheres têm direito à educação.

Por último, foi possível reafirmar, que a consagração do direito à educação é uma responsabilidade dos Estados Nacionais. Para tanto, considerando suas possibilidades econômicas, eles devem investir, no mínimo, o equivalente de 4 a 6% do PIB em políticas públicas educacionais ou devem atribuir, pelo menos, de 15 a 20% do total do orçamento público em educação, na forma do orçamento geral do Estado.

Embora os avanços obtidos em Incheon, relevantes em nível internacional, mas aparentemente tímidos para o contexto brasileiro, muitos passos ainda precisam ser dados. Já em julho ocorrerá na Etiópia, em Adis Adeba, uma cúpula sobre o “Financiamento para o Desenvolvimento”. Ali serão definidas as estratégias da Comunidade Internacional e as tarefas dos países para viabilizar financeiramente o novo marco de objetivos e metas de 2016 a 2030, que incluem a educação.

Em setembro ocorrerá a cúpula sobre “Desenvolvimento Sustentável” da Organização das Nações Unidas. Nessa ocasião serão definidos os “Objetivos de Desenvolvimento Sustentável”, incluindo um objetivo sobre educação, pautado pela Declaração de Incheon.

Por último, em novembro, na Conferência Geral da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) será aprovado e adotado o quadro de ações e metas de 2016 a 2030.

Como se vê, há ainda muito a ser feito para garantir um bom marco internacional para o direito à educação. E a qualidade desse conjunto de objetivo, metas e ações dependerá muito da capacidade de proposição e resistência da sociedade civil, em especial da rede da Campanha Global pela Educação, responsável por aglutinar diferentes atores em torno de uma agenda comum.


As deliberações do Fórum Mundial de Educação

Daniel Cara

Na tarde de ontem (20/5) na Coréia do Sul, madrugada de anteontem no Brasil, foi aprovada a Declaração de Incheon, encerrando a etapa deliberativa do Fórum Mundial de Educação liderado pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).

Elaborada pelos governos de mais de cem países, organizações da sociedade civil e grupos de jovens, a Declaração de Incheon estabelece uma visão de política educacional que deve servir como referência aos países para os próximos quinze anos em matéria educativa. O documento também colabora com a definição de objetivos a serem incorporados nas novas metas de desenvolvimento sustentável, a serem estabelecidas até o final deste ano.

Para quem esteve aqui e participou do extenso processo de elaboração do texto, a Declaração de Incheon representa alguns avanços e expressa uma enorme capacidade de resistência. Para citar apenas um exemplo, ao longo do processo, esteve em risco no âmbito do texto, o dever fundamental dos Estados Nacionais em consagrar o direito à educação, bem como a gratuidade do ensino básico obrigatório.

Ao mesmo tempo, alguns atores (representantes de países, grupos empresariais e organizações sociais) defendiam extrair da Declaração as demandas relativas ao financiamento da educação. Porém, não conseguiram.

Após longo processo negocial, foi possível garantir que os Estados Nacionais devem investir, no mínimo, uma faixa entre 4% a 6% do PIB (Produto Interno Bruto) ou 15% a 20% do orçamento geral dos Estados Nacionais em políticas educativas, em um marco de transparência, monitoramento rigoroso e prestação de contas.

Para fazer sentido prático, essa meta de financiamento da educação deve considerar as demandas educacionais de cada país, tanto em termos de acesso quanto em termos de qualidade. No caso do Brasil, como se sabe, a meta do Plano Nacional de Educação é de investimento de, no mínimo, o equivalente a 10% do PIB a ser alcançada até 2024.

Perspectivas

No tocante às perspectivas, a Declaração de Incheon demarcou algumas definições basilares, como as de aprendizagem. Ficou estabelecido que todos estudantes têm direito a obter conhecimentos, habilidades e valores que necessitam para viver com dignidade, alcançar seu potencial e contribuir com suas sociedades como cidadãos globais.

Como adendo, durante o Fórum Mundial de Educação, algumas preocupações emergiram. Diferente de ocasiões anteriores, a educação foi mais abordada como um insumo ao desenvolvimento do que como um direito humano. E entre os expositores, quase nenhum educador se expressou – o que além de ser grave equívoco, trouxe prejuízo à qualidade dos debates.

Nos próximos posts, durante as próximas semanas, falarei sobre diversos temas decorrentes da experiência obtida no Fórum Mundial de Educação, inclusive sobre o que pude observar do sistema de ensino da Coréia do Sul. Logo também irei traduzir a Declaração de Incheon para o português.


Os discursos e as polêmicas no Fórum Mundial de Educação

Daniel Cara

Ontem (19/5) aconteceu a cerimônia de abertura do Fórum Mundial de Educação em Incheon, Coréia do Sul. Nos eventos internacionais, normalmente, essas ocasiões são momentos protocolares, dedicadas a transmitir apenas uma mensagem geral, evitando qualquer polêmica.

Por sorte, o que ocorreu foi um pouco diferente. Os oitos oradores apontaram mensagens e caminhos que pautarão o evento. Não é possível concordar com todos, mas as posições ficaram explicitadas.

A Diretora Geral da Unesco, Irina Bokova, refez o caminho das metas de educação, iniciado em Jontiem (Tailândia) em 1990, fortalecido no evento de Dacar (Senegal) em 2000 e em redefinição aqui em Incheon (2015). Ressaltou a presença de mais de 130 ministros neste Fórum e reforçou que a educação é um direito humano inalienável. Refletiu sobre o fato de que apenas um terço dos países cumpriram as metas de Dacar, que se encerram em dezembro de 2015. Para isso não acontecer novamente, Bokova afirmou que é preciso financiamento adequado da educação nos países, reforçado por cooperação internacional onde for necessário.

Irina reforçou ainda que para universalizar o acesso à educação primária nos países mais atrasados em termos educacionais são necessários USD 22 bilhões por ano de investimento global.

A presidente da Coréia do Sul, Park Geun-hye, fez um discurso elegante. Narrou a travessia sul-coreana de um país devastado pela guerra para uma sociedade desenvolvida. Um dos pilares das mudanças se deve ao esforço nacional realizado após a Guerra da Coréia, pautado em investimento educacional. Segundo ela, para os coreanos, “a educação é o cimento para o crescimento da pessoa e da nação”.

A presidente Park foi sucedida por seu conterrâneo, Ban Ki-moon. O secretário geral da ONU deu sequência à posição dela: “a Coréia do Sul é o único país que saltou de uma situação de pós-guerra e de extrema pobreza para um presente de desenvolvimento”. A chave foi o investimento em educação.

Ban Ki-moon reiterou que é preciso o investimento adequado em educação ao redor do mundo, inclusive como uma arma contra o terrorismo e o desrespeito aos direitos humanos: “a educação é um instrumento de segurança. Por isso, terroristas e extremistas atacam escolas”. Essa visão foi seguida por muitos outros oradores.

Adentrando no tema do conceito de educação, em suas palavras, reforçou que a educação supera as proficiências em matemática, língua e ciências. “É preciso uma educação dedicada também aos valores, à cultura, a formar cidadãos globais livres e comprometidos com os direitos humanos e a sustentabilidade”.

Diferente de seus compatriotas, o terceiro sul-coreano a falar foi o presidente do Banco Mundial, Jim Yong Kim. Foi uma fala infeliz. Além de apresentar a agenda de sua organização como o meio mais eficaz de universalizar uma educação dedicada ao fim da pobreza, afirmou que se os latino-americanos estudassem nos países asiáticos, hoje, a América Latina estaria em outra situação econômica e social. O discurso gerou reação negativa das delegações latino-americanas. Afora a indelicadeza, a educação, sendo um direito, deve ser um fim em si mesma, não apenas um insumo ao crescimento. Além disso, a relação entre educação e desenvolvimento econômico é bem mais complexa do que parece no discurso do Sr. Kim.

O diretor do Unicef, Anthony Lake, reforçou que nenhuma criança e adolescente pode estar fora da escola. Reiterou que o acesso à educação é um desafio monumental, mas que o direito depende também da qualidade: “as crianças precisam aprender e isso significa garantir os conhecimentos, as competências e os valores necessários para uma vida plena”.

Os demais oradores seguiram as posições de seus antecessores. Coube ao laureado com o Prêmio Nobel da Paz de 2014, Kailash Satyarthi, concluir os discursos. Ele reforçou que muito foi dito nos fóruns até aqui, muito esforço foi empreendido, mas ainda o mundo está distante de universalizar o direito humano à educação. Reiterou a demanda por financiamento educacional adequado e foi o orador mais aplaudido do evento.

Estabelecendo o cenário

Os discursos de abertura foram seguidos por um painel de debates, com seis expositores. As três falas mais importantes foram do Prêmio Nobel de Economia, James Heckman, do assessor das Nações Unidas, Jefrey Sachs, e da presidente da Campanha Global pela Educação, Camilla Croso.

Heckman foi taxativo: “não é possível, nem aceitável, fazer política educacional com base no PISA (sistema de avaliação internacional do desempenho de estudantes)”. Foi ovacionado.

Sachs, depois de um discurso forte em defesa do financiamento adequado da educação apresentou uma solução polêmica: “devemos buscar dinheiro com os empresários, os mega bilionários”. Porém, além disso não ser suficiente – a demanda é grande –, os recursos não chegam sem condicionantes injustos.

Camilla Croso foi a única a reiterar no painel que a educação não é apenas um direito de crianças e jovens, mas também de adultos e idosos. Além dela, apenas Irina Bokova teve esse preocupação no primeiro dia do evento, o que preocupa.

20/5: a plenária dos ministros

Na manhã de hoje (20/05) aqui na Coréia do Sul, dos mais de 130 ministros presentes, o ministro da educação do Brasil, Renato Janine Ribeiro foi um dos poucos a se pronunciarem. Reforçou o esforço brasileiro no combate à extrema pobreza e apresentou dados de avanço do Brasil no acesso à educação no país. Inclusive, reiterando a relevância das ações de busca ativa dos brasileiros e das brasileiras que estão fora da escola.

Polêmicas

Alguns países e organizações têm defendido a extração de trechos do documento que exigem que a educação seja gratuita. Há também polêmicas relativas à questão de gênero e das metas de financiamento da educação. A posição da sociedade civil e da maior parte dos governos é de não retroagir em relação às conquistas obtidas no evento prévio realizado em Mascate, em maio de 2014. Vale acompanhar as cenas dos próximos capítulos.


Começa o Fórum Mundial de Educação

Daniel Cara

A educação deverá ter um objetivo global e sete metas a serem cumpridas pelos países até 2030.

Na tarde de hoje (18/5) em Incheon na Coréia do Sul – madrugada no Brasil – começa o Fórum Mundial de Educação. O evento, que termina na sexta-feira (22/5) analisará o cumprimento das seis metas de “Educação para Todos” (EPT), monitoradas pela Unesco. Além disso, definirá as metas para os próximos 15 anos.

As metas EPT foram definidas em Dacar, Senegal, no ano de 2000. Elas encerram sua vigência em dezembro deste ano. Mais de 180 países se comprometeram a cumpri-las, mas poucos tiveram sucesso. No caso do Brasil há duas avaliações sobre o cumprimento das metas EPT, uma produzida pela Unesco e outra realizada pelo governo brasileiro. Minha posição foi expressa em texto publicado neste espaço.

Participo do Fórum Mundial de Educação integrando a delegação oficial brasileira, liderada pelo Ministério da Educação e chefiada pelo ministro da pasta, Renato Janine Ribeiro. O Brasil é o único país latino-americano a ter um membro da sociedade civil em sua delegação oficial e um dos poucos do mundo. A Campanha Nacional pelo Direito à Educação, rede que coordeno no Brasil, participa em nível nacional, regional e global da construção e monitoramento do programa Educação Para Todos.

O novo objetivo global e as prováveis novas metas

O Fórum Mundial de Educação foi precedido de diversos eventos temáticos e de alinhamento para construção de acordos. O último, realizado em Mascate, em maio de 2014, concluiu que a educação determinaria um objetivo global, a integrar os novos objetivos globais para os próximos 15 anos, e sete metas.

O objetivo global definido naquele encontro foi:

Assegurar uma educação de qualidade, equitativa e inclusiva, assim como a aprendizagem ao longo da vida para todos até 2030.

Resumidamente, as sete metas sistematizadas em Mascate são:

Meta 1. Educação primária e ensino secundário que levem a resultados de aprendizagem relevantes e eficazes

Meta 2. Desenvolvimento da primeira infância, cuidados e educação pré-escolar levando a preparação e interface nas escolas  

Meta 3. Ensino técnico, vocacional, profissional e ensino superior

Meta 4. Habilidades para o trabalho e empreendedorismo

Meta 5. Igualdade de gênero, equidade e inclusão, com foco em grupos vulneráveis

Meta 6. Alfabetização funcional de jovens e adultos

Meta 7. Conhecimentos e habilidades que promovam o desenvolvimento sustentável

A princípio, o Fórum Mundial de Educação deve aprovar e aprofundar as resoluções de Mascate. No entanto, há países e grupos que buscam fazer ajustes ou alterar os textos.

Ao longo dos dias publicarei textos sobre o evento.