O MEC está em declínio e a Base Curricular é prova disso
Daniel Cara
Hoje (6/abril) o Ministro da Educação, Mendonça Filho, entrega a terceira versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para o Conselho Nacional de Educação (CNE). O texto chega com atraso. Segundo o calendário do Plano Nacional de Educação 2014-2024 (PNE), o documento deveria ter sido entregue ao CNE em junho do ano passado (2016). Com a tarefa em suas mãos, agora é esperado que os conselheiros e as conselheiras corrijam erros de elaboração cometidos até aqui pelo Ministério da Educação (MEC), utilizando o tempo necessário para isso.
Passou o momento em que era debatida a necessidade de uma orientação curricular para todo o território nacional. O direito à educação é um pressuposto da cidadania de todos os brasileiros e de todas as brasileiras. Segundo a Constituição Federal, a educação deve ser ofertada de modo a garantir a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, com padrão de qualidade. E a política curricular desempenha um papel fundamental para a observância desses dois princípios. Porém, não é simples elaborar uma política curricular.
A sistematização e a análise das políticas sociais, como campo da administração pública, trazem alguns ensinamentos. O principal é que o sucesso de uma ação governamental, especialmente em áreas sensíveis como a educação, depende da legitimidade da política perante seus implementadores reais. No caso do currículo, a implementação depende, essencialmente, dos formadores de professores e dos professores.
Se no Governo Dilma esse envolvimento já não era feito a contento, no Governo Temer a situação piorou, e muito. Como resultado, o futuro da BNCC tende a ser o mesmo dos Parâmetros Curriculares Nacionais do Governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002): não chegaram às escolas, embora ainda influenciem a elaboração de livros didáticos – o que parece muito, mas está infinitamente distante de ser suficiente.
As fundações e movimentos empresariais, que de modo constrangido apoiam esse governo, argumentarão que milhões de pessoas participaram das consultas para elaboração da BNCC, inclusive por meio de seminários estaduais e nacionais.
No Brasil não é difícil mobilizar milhões. E a educação tem certa facilidade para isso. Porém, quantidade não significa pluralidade, ou seja, a capacidade de mobilizar muitas pessoas de diferentes origens e perspectivas. A pergunta é: isso é possível? E a resposta é sim. As conferências nacionais de educação (Conaes) de 2010 e 2014 foram capazes de mobilizar, qualitativamente, mais de 4 milhões de brasileiros de diferentes segmentos e setores da comunidade educacional. E o produto desse trabalho difere, razoavelmente, do processo e do conteúdo da BNCC.
No tocante ao documento entregue ao CNE, além de certa pasteurização de conteúdos e uma prolixidade que manifesta a insegurança do texto, há questões graves, como a ausência da parte relativa ao Ensino Médio e a demanda pela alfabetização precoce das crianças, aos 7 anos de idade, contrariando dispositivos do PNE.
A ausência do documento sobre o Ensino Médio demonstra a falta de orientação de um governo que acaba de aprovar uma reforma contraproducente para essa etapa, que foi rejeitada por professores, estudantes e, até mesmo, gestores estaduais – responsáveis pelas escolas de Ensino Médio. Estes últimos, inclusive, chegaram a eleger para a presidência do Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Educação (Consed) um crítico da reforma, o Secretário do Ceará, Idilvan Alencar – o que representou uma derrota fragorosa do MEC e de sua articulação política.
E pior: a equivocada Reforma do Ensino Médio depende essencialmente da BNCC para ser operada, inclusive no que se refere a questões polêmicas como o ensino de artes, educação física, sociologia e filosofia. Sobre esse ponto, muitas desculpas serão dadas. Nenhuma, honestamente, se justifica.
Forçar a barra para a alfabetização precoce demonstra a incapacidade desse governo de ler os avanços científicos em matéria de psicologia, pedagogia, didática e neurociência. Todos eles indicam: é contraproducente acelerar forçosamente a alfabetização, que a bem da verdade, não tem uma idade “certa” para ocorrer. Conforme têm apontado pesquisas da área, a alfabetização se caracteriza como um processo que normalmente tem sua primeira etapa consolidada ao final dos três primeiros anos do ensino fundamental, avançando ao longo dos anos iniciais. Derrotados na tramitação do PNE nessa questão, os atuais gestores do MEC, especialmente os filiados ao PSDB, tentam agora forçar a barra. Para servir a que interesses, ou melhor, interesses de quem? Fica sempre a pergunta.
Normalmente, a parte representa o todo. O Governo Temer manifesta os primeiros sinais de esgotamento. Não é fácil agradar a parte irascível e voraz da elite empresarial que o mantém no poder, praticar manobras judiciais para não cair e manter a fidelidade parlamentar de sua coalizão paradoxal, formada por ultraconservadores e ultraliberais.
Se o Planalto começa a entrar em declínio após o ilegítimo processo de impeachment, com o MEC não é diferente. Enquanto a agenda de Mendonça Filho é toda orientada para a disputa paroquial em Pernambuco, onde pretende ser governador ou senador, medidas importantes como o Sinaeb (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica) e a implementação do CAQi (Custo Aluno-Qualidade Inicial) são – respectivamente – revogadas e proteladas, para citar apenas dois bons exemplos de dispositivos demandados pelo PNE.
Ao mesmo tempo que o MEC não considerou os implementadores da política (formadores de professores e suas entidades, especialmente a Anfope – Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação; além dos professores) na BNCC, fugiu da responsabilidade de propor um currículo ao Ensino Médio, após reformá-lo de maneira – no mínimo – irresponsável e, por fim, tenta invalidar acordos consagrados na tramitação do PNE – manobrando pela alfabetização precoce de crianças.
Em tempo, isso deve gerar forte e justificada oposição da comunidade educacional, que se espalha por todo o país e é muito mais ampla em representatividade e pluralidade do que o grupo que interage e busca legitimar – ainda que de forma constrangida – o MEC, composto por poucas associações de base empresarial, praticamente restritas à ponte área São Paulo-Rio de Janeiro.
Não é dessa forma que o Brasil será capaz de superar sua grave crise educacional, que como parte de todas as nossas outras crises como nação, revela que temos desafios hercúleos para sermos um país justo, próspero e sustentável.