Para sair da crise econômica, o Brasil não pode produzir injustiça social
Daniel Cara
Duas verdades sobre as crises: primeiro, para esmagadora maioria da população, elas não são oportunidades – pelo contrário, são dramáticas. Segundo, para superá-las, as sociedades devem buscar alternativas justas, exigindo mais de quem pode dar mais. É exatamente o inverso do que tem sido proposto por boa parte dos formadores de opinião.
Desde o surgimento da “Agenda Renan”, uma espécie de receituário ultraliberal para salvar o combalido Governo Dilma, (re)emergiram vocalizadores que propõem a revisão do modelo de financiamento dos direitos sociais, especialmente os direitos à educação e à saúde – alicerçados atualmente em vinculações constitucionais obrigatórias.
A Constituição Federal de 1988 sequer cumpriu sua missão e há quem queira desconstruir seu principal mérito: o princípio republicano de que a cidadania deve ser plena e para todos no Brasil, por meio da universalização dos direitos.
No dia 13 de setembro, o economista Armínio Fraga, presidente do Banco Central durante o Governo FHC, publicou artigo intitulado “Respostas à altura da crise”. O texto é contraditório. Critica o gigantismo do Estado, exige serviços públicos de qualidade e propõe o fim de todas as vinculações constitucionais obrigatórias, em nome de um “orçamento de base zero” – o que praticamente inviabiliza o atual e insuficiente patamar de financiamento da educação e da saúde.
Armínio Fraga apresenta uma equação insolúvel: a oferta de serviços públicos de qualidade sem orçamento adequado. Caso o país embarque em suas propostas, a educação e a saúde deixarão de contar com um orçamento previsível e garantido, ainda que incapaz de consagrar adequadamente esses direitos. Curiosamente, uma das principais reclamações dos empresários é a situação de imprevisibilidade da economia nacional. Fraga parece não se preocupar em estender essa instabilidade para o setor público, prejudicando centenas de milhões de pessoas.
Mas não é difícil desconstruir a posição do economista. Relatório recente da Organização Mundial de Saúde (OMS) concluiu que o governo brasileiro destina à saúde de sua população, por ano, menos do que a média mundial – em outras palavras, falta recurso para a política sanitária. Em 2012, o Brasil investiu 7,9% do seu orçamento em saúde. A média mundial foi de 14%, sendo 16,8% para os países ricos.
Em educação não é diferente. Estudo produzido pela consultoria Gems Education Solutions, com base em dados da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), concluiu que os educadores brasileiros recebem, em média, US$ 14,8 mil por ano. Entre os países analisados, esse patamar fica apenas acima da Hungria e da Indonésia. Os autores do estudo concluem que “o Brasil deveria cuidar do salário dos professores para alcançar o objetivo da eficiência educacional”. Portanto, para ser eficiente na educação pública, o país precisa remunerar melhor seus docentes, o que – além de ser óbvio – refuta a argumentação de Armínio Fraga.
Infelizmente, a posição de Fraga encontra respaldo na visão de outros formadores de opinião, inclusive veículos de imprensa. No último domingo (13/9), a Folha de S. Paulo publicou o editorial “A última chance”. A mensagem é cristalina: a única saída para o Governo Dilma é contrariar sua base eleitoral e assumir radicalmente a ortodoxia econômica, haja vista que a presidenta já caminhou a passos largos nesse sentido.
O fracasso da primeira leva de ajuste fiscal promovido por Joaquim Levy sequer foi problematizado pelos editorialistas. Se a opinião pública seguir essa toada, o Brasil voltará a ser um país de receituário único. E a socialização dos custos prejudicará apenas a parcela com menor renda da população.
O mais preocupante trecho do editorial “A última chance” trata do financiamento dos direitos sociais. Diz o texto: “as circunstâncias dramáticas também demandam uma desobrigação parcial e temporária de gastos compulsórios em saúde e educação, que se acompanharia de criteriosa revisão desses dispêndios no futuro”.
Traduzindo em miúdos, diante da crise, direitos básicos devem ser sacrificados. A falta equipamentos de saúde e o insuficiente o acesso à educação parece ser secundário. Importa muito menos que esses serviços públicos careçam – desde sempre – da necessária qualidade.
Não é aceitável que o único caminho para rearranjar a economia do país seja sacrificar, como sempre, aqueles que mais dependem da ação do Estado. Não é digno que um país, vergonhosamente desigual como o Brasil, assuma que é possível produzir e reproduzir um pouco mais de desigualdade para recuperar sua economia.
Ontem, no texto “A hora e a vez do MEC”, a Folha de S. Paulo incorreu em erro. Atribuiu exclusivamente ao Plano Nacional de Educação 2014-2024 (PNE) a meta de universalização da pré-escola em 2016, como se ela não fosse justa.
Desde 2009, o acesso à pré-escola é um direito constitucional subjetivo. Portanto, trata-se de um dever do Estado e uma responsabilidade da família. Organismos internacionais apoiam a medida, afora pesquisas longitudinais sobre aprendizagem e escolarização: quem tem acesso à pré-escola tende a ter melhor trajetória educacional.
A universalização da pré-escola, para crianças de 4 a 5 anos, está inscrita no inciso primeiro do artigo 208 da Carta Magna, por meio da Emenda à Constituição 59/2009. Ou seja, o PNE apenas reiterou o que já estava estabelecido há seis anos. Sem dúvida, um bom prazo para a necessária expansão das matrículas – que não ocorreu. Essa deveria ser a crítica dos editorialistas da Folha de S. Paulo, inclusive problematizando as causas, como o subfinanciamento da educação infantil somado à baixa disposição do Governo Federal em participar da solução do problema.
Não há dúvida de que é necessário um ajuste para que, em breve, seja retomado o crescimento econômico no país. Diante desse fato concreto, o único caminho justo é que a maior parte da conta seja paga por quem tem mais condições de saldá-la: a elite econômica brasileira – que aliás, proporcionalmente, paga muito menos tributos do que a camada com menor renda.
Ao fim e ao cabo, tudo se resume a uma opção entre o combate sincero e árduo às desigualdades contra um receituário ortodoxo, que ampliará as iniquidades brasileiras. Não deveria haver dúvida sobre o caminho trilhar. A solução de uma crise econômica não pode resultar em (mais) injustiça social.