Blog do Daniel Cara

Arquivo : agosto 2015

Agenda Brasil: a educação pública não está bem, mas pode ficar pior
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Daniel Cara

Em 1994, Fernando Henrique Cardoso criou o “Fundo Social de Emergência”. Embora o nome pudesse sugerir algo positivo – um fundo de emergência para a área social, por exemplo –, a medida extraía 20% dos recursos constitucionais dedicados ao financiamento de direitos, como a educação. Naquele momento, a grande imprensa e quase todos os agentes econômicos brasileiros apoiaram a medida. O argumento era a sustentabilidade do Plano Real. Desde então, o mecanismo permanece vivo. Em 2000 ganhou o nome de Desvinculação de Receitas da União (DRU).

Em 2009, uma das mais importantes ações de Lula foi sustentar o fim da incidência da DRU na educação, em apoio à pressão da comunidade educacional. Para não desequilibrar as contas públicas, foi negociada uma revinculação gradativa até 2011. Desde 1994, a área perdeu cerca de R$ 80 bilhões com o mecanismo. Contudo, a incidência da DRU para as políticas públicas educacionais nunca esteve tão próxima de retornar.

Nos últimos dias, o tema foi retomado. Deve-se à “Agenda Brasil” – ou a “Agenda Renan” – o retrocesso. Ele consta nas entrelinhas da proposta. As conquistas da Constituição Federal de 1988 sempre incomodaram parte da elite econômica brasileira. A Carta Magna deu centralidade aos direitos sociais e determinou que parte deles, como é o caso da educação, seja financiada por vinculações obrigatórias de receitas tributárias. O Governo Federal deve investir 18% dos impostos que arrecada na área. Estados e Municípios 25% de todas suas receitas.

Muitos encaram isso como injusta imposição. O argumento mais repetido pelos adversários das vinculações constitucionais é uma suposta liberdade que os governos devem ter na implementação de sua agenda. Quando mais sinceros, alguns chegam a assumir que um dos principais compromissos de um governante deve ser o pagamento de dívidas – estabelecidas em contratos muitas vezes injustos; porém, isso não importa.

Desconheço alguma prioridade pública superior à garantia de direitos fundamentais como a educação e saúde. Também discordo da concessão de liberdade total aos gestores, considerando a tradição de descontinuidade, corrupção e permissividade que marca a administração pública brasileira.

Mas a verdade é que o tema avança, quase sem constrangimento. E o pior, com o recrudescimento da crise econômica, a ideia vai ganhando corpo e novos defensores. O dramático é que as vinculações constitucionais são imprescindíveis, porém insuficientes para universalizar o direito à educação básica pública com qualidade. É preciso mais recurso, especialmente para remunerar de maneira condigna os profissionais do magistério.

Diante da crise econômica, membros do governo federal já defendem a necessidade de criar meios para cortar despesas obrigatórias. Joaquim Levy tem sido o fiador da proposta. Por sorte, não se trata de voz onipresente na Esplanada dos Ministérios. Ainda assim, é preciso que seus colegas saiam do conforto dos bastidores e se manifestem em público, especialmente os titulares das pastas sociais – estranhamente, os mais silenciosos do Planalto Central.

Se não bastasse o ajuste fiscal recessivo, que diminui a renda da população e asfixia a manutenção de postos de trabalho, o povo ainda corre o risco de perder serviços públicos existentes – mesmo sendo de baixa qualidade.

Muitos analistas defendem que a “Agenda Renan” é uma espuma, uma forma de tirar o foco da crise política. Outros apostam que ela nunca prosperará, devido à fragmentação partidária no Poder Legislativo Federal. O que se sabe é que ela manifesta o interesse de setores poderosos da sociedade, que já não demonstram vergonha em defender a secundarização dos direitos sociais. Para eles, é preciso defender a todo custo a política de ajuste fiscal em vigor, que favorece essencialmente o mercado financeiro. Não importa se a implementação do programa econômico de Joaquim Levy resulte em um grave refluxo de conquistas constitucionais, obtidas com muito esforço em 1988.

Por prudência, é fundamental que os cidadãos e os movimentos sociais pressionem, desde já, o Governo Federal e o Congresso Nacional para que não patrocinem e permitam tão grave retrocesso. Caso contrário, o Brasil ficará ainda mais distante de ofertar educação pública de qualidade. Aliás, muito mais distante do que se encontra hoje.

O risco é do país andar para trás. Ao que parece, já está andando.


A educação vai virar pauta bomba
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Daniel Cara

Os direitos sociais precisam ser ampliados. Porém, não é isso que está sendo gestado no Brasil, com o ajuste fiscal de Joaquim Levy e a “Agenda Brasil” de Renan Calheiros. Investir na consagração direitos logo vai ser encarado como a proposição e preparação de pautas bomba.

Logo após as eleições de 2014, argumentei que as políticas educacionais tinham colaborado para a vitória de Dilma Rousseff. Democratizar a escolarização fideliza o eleitorado. O fenômeno é antigo, sendo observado empiricamente desde 1930 no Brasil, a partir dos trabalhos de Celso Beisiegel (USP).

Embora a escolarização não signifique necessariamente ascensão social, é certo que ela é um instrumento promissor para a melhoria da renda e das condições de vida das famílias.

A Pátria Educadora

No primeiro dia de seu novo governo, a presidenta Dilma Rousseff surpreendeu a todos, anunciando “Pátria Educadora” como lema de seu segundo mandato. A expectativa da comunidade educacional foi alta: a “Pátria Educadora” deveria significar a contribuição do segundo governo Dilma para o cumprimento do Plano Nacional de Educação (PNE). O PNE estabelece 20 metas capazes de fazer o Brasil avançar na consagração dos direitos educacionais da população. Mas, para isso, Dilma Rousseff precisava mudar sua opinião sobre o plano.

O PNE foi sancionado em 25 de junho de 2014. O texto tramitou por quase quatro anos no Congresso Nacional e foi aprovado por todos os partidos, sem exceção. Contudo, como o Palácio do Planalto foi derrotado em temas importantes, como a transferência de recursos da União para Estados e Municípios. Incomodada, a presidenta Dilma Rousseff analisou até o último minuto se apresentava ou não vetos ao texto. Por prudência, recuou.

Embora tenha demorado para decidir, Dilma acabou compreendendo que seus vetos seriam derrubados, inclusive com votos do PT – um dos partidos mais ativos na construção do plano. A democratização das oportunidades educacionais, um dos pilares do PNE, é um direito e um tema caro ao eleitor. Isso foi comprovado pelas pesquisas qualitativas antes e depois do segundo turno da disputa presidencial, reforçando o fenômeno de reciprocidade entre expansão de matrículas e voto.

As contradições da Pátria Educadora

Após o anúncio do lema “Pátria Educadora”, o governo Dilma Rousseff contou com três Ministros da Educação: Cid Gomes, Luiz Cláudio Costa (interino) e Renato Janine Ribeiro – que até o momento permanece no cargo. Em dezenas de discursos feitos desde o início de seu segundo mandato, a presidenta mencionou o plano pouquíssimas vezes. Nunca com a profundidade merecida e necessária.

Ao invés de se dedicar ao cumprimento do PNE, a sociedade e o governo dispenderam um tempo precioso discutindo o texto “Pátria educadora: a qualificação do ensino básico como obra de construção nacional”, assinado pela Secretaria de Assuntos Estratégicos, chefiada pelo Ministro Roberto Mangabeira Unger.

Como resultado, com um mínimo de rigor, nenhum dispositivo do PNE previsto para ser implementado até 24 de junho de 2015 foi cumprido. A tendência é que o mesmo ocorra no próximo ano, quando vence o prazo para diversos outros dispositivos.

Entre esses, um dos mais desafiadores, é o cumprimento das metas de universalização do acesso para a população de 4 a 17 anos. Em termos quantitativos, isso significa criar 2,8 milhões de vagas em poucos meses.

O desafio, que já não era pequeno, ficou quase impossível. O ajuste fiscal de Joaquim Levy gerou cortes profundos na área. Em uma primeira rodada, R$ 9,2 bilhões foram suprimidos do orçamento do Ministério da Educação (MEC). Desse total, R$ 3,4 bilhões (37%) seriam destinados exatamente para a construção de unidades de educação infantil. Isso praticamente inviabiliza o cumprimento da meta de universalização da pré-escola (4 a 5 anos de idade), demandada tanto pelo PNE como pela Constituição Federal, após a Emenda 59/2009.

Ainda no corte de R$ 9,2 bilhões, outro R$ 1,9 bilhão (21%) asfixiou o investimento em obras em universidades e institutos federais, o que prejudica seriamente o cumprimento da meta de criação de 2 milhões de matrículas públicas no ensino superior até 2024.

Tanto a expansão de creches e pré-escolas como a criação de matrículas no ensino superior foram compromissos firmados por Dilma Rousseff na campanha eleitoral de 2014. Se tudo continuar como está, ambos não serão cumpridos.

Os direitos educacionais são pautas bomba

Em raciocínio oposto ao que está em voga, para construir equipamentos educacionais correspondentes a um padrão mínimo de qualidade, seria preciso investir cerca de R$ 13 bilhões para matricular todos os brasileiros de 4 a 17 anos que estão fora da escola. Ou seja, ao invés de extrair R$ 3,4 bilhões do orçamento do MEC, o Governo Federal deveria ampliá-lo.

Mas como tudo o que se opõe ao ajuste fiscal de Joaquim Levy é taxado de pauta bomba, a educação não foge a regra: precisa com urgência de mais recursos.

Porém, em caminho oposto ao da promoção dos direitos educacionais, o Governo Federal anunciou – no fim de julho – um corte adicional de R$ 1 bilhão na área, totalizando R$ 10,2 bilhões.

A emergência da “Agenda Brasil”

Todos os direitos sociais são pautas bomba. Não é a toa que a ultraliberal “Agenda Brasil” de Renan Calheiros, que faria corar de vergonha muitos tucanos, busca desconstruir a universalização do Sistema Único de Saúde (SUS) e a vinculação constitucional que financia a educação, que é considerada onerosa.

Segundo matéria do Valor Econômico, Joaquim Levy disse em reunião da OCDE em Paris que a educação estava protegida de cortes. Ao ser lembrado por jornalistas que a área tinha sido a mais afetada por sua política de ajuste fiscal, não teve pudor para assumir sua posição: “convenhamos, nós temos vinculações constitucionais na educação que obviamente estão sendo cumpridas e eu acho que isso é que o indicador”.

O ministro parece ter se esquecido do fato de que o que é constitucional ninguém pode tocar. Talvez por isso tenha se entusiasmado tanto com a “Agenda Renan”, certamente um nome mais apropriado ao conjunto de propostas do que “Agenda Brasil”.

Qual é o golpe?

Gera muita preocupação as tentativas de apear Dilma Rousseff do Palácio do Planalto. Se isso ocorrer, será um grave retrocesso institucional para o Brasil e uma mácula indelével para uma democracia ainda recente.

Contudo, outro perigo assola o país, o do refluxo de conquistas estabelecidas na Constituição Federal de 1988. Manter essas conquistas deve ser a preocupação primordial de qualquer cidadão brasileiro. Deveria ser também do emparedado Governo Federal, mas o gabinete de Dilma Rousseff não demonstra poder de reação suficiente para propor e implementar uma agenda. Especialmente àquela para a qual a presidenta foi reeleita.

É preciso unir forças contra os retrocessos. Se acertar na pauta, o dia 20 de agosto será uma grande oportunidade.

***

Atualização: publiquei esse texto na madrugada de hoje. Logo pela manhã, leio matéria assinada pelos jornalistas Valdo Cruz e Gustavo Patu na Folha de S. Paulo. O texto informa que “por meta de 2016, Dilma discute até corte de despesas obrigatórias“. São elas a salvaguarda para o financiamento dos direitos sociais, especialmente educação e saúde. A preocupação dos cidadãos deve ser redobrada. Caso se confirme, é a pior notícia que um governo eleito com um programa de centro-esquerda poderia dar. O mercado está conseguindo impor – definitivamente! – sua agenda.


Secretários do Norte exigem participação do Governo Federal na Amazônia
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Daniel Cara

Pela primeira vez, os secretários estaduais de educação do Norte decidiram revelar, para todo país, a necessidade de recursos para garantir o direito à educação naquela região.

Em Carta publicada hoje (11/8), redigida em Manaus, eles defendem que além do padrão mínimo de qualidade nacional – a ser instituído por meio do Custo Aluno-Qualidade Inicial (CAQi) –, é preciso constituir um fator amazônico adicional. É um grande acerto.

Leia aqui a “Carta dos Secretários Estaduais de Educação da Região Norte – Por um sistema nacional de educação efetivo: com padrão mínimo de qualidade nacional, complementado pelo fator amazônico”

Três aspectos chamam a atenção no documento. Em primeiro lugar, os secretários exigem que os cidadãos da região Norte tenham condições iguais de acesso e permanência na escola, como preconiza a Constituição Federal. Ou seja, se a unidade escolar de um paulistano terá biblioteca, a de um manauara também deverá ter.

Ao compreender isso, não embarcam na tese de alguns de que é aceitável dar menos a quem já tem menos, sob a alegação de que o custo de vida na Amazônia é mais barato do que no Sudeste do país, por exemplo.

Também discordam que é possível abrir mão de alguns insumos (essenciais!) para o processo de ensino-aprendizagem – como laboratórios de ciências – em escolas indígenas, quilombolas e ribeirinhas. Inevitavelmente, esse seria o resultado do rebaixamento ou simplificação do padrão mínimo de qualidade comum a todo país.

Sempre é preciso lembrar e insistir: a cidadania é um atributo nacional. É evidente que há diferenças regionais no Brasil, o que inclusive alimenta a riqueza cultural e histórica do país, mas também expressa desigualdades. Assim, independentemente do local de nascimento ou moradia, todos brasileiros têm direito a escolas públicas que sejam capazes de garantir que os professores ensinem e os alunos aprendam.

Nunca é ocioso lembrar que o Piso do Magistério, por exemplo, é nacional. Bem como o salário mínimo. E isso ocorre porque é preciso determinar referenciais para todos os trabalhadores brasileiros, em patamar de igualdade.

Em segundo lugar, de forma acertada, a Carta publicada hoje reforça a tese do Custo Aluno-Qualidade Inicial (CAQi). Ele deve ser implementado até 24 de junho de 2016, segundo o Plano Nacional de Educação (PNE) – Lei 13.005/2014.

O CAQi é um mecanismo proposto e criado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Sua formulação foi iniciada em 2002, um ano antes de começar o primeiro mandato do ex-presidente Lula.

O objetivo do CAQi é materializar o direito de todos os alunos a estudar em escolas públicas com professores condignamente remunerados, estimulados por uma política de carreira, formação continuada, lecionando para turmas com o número adequado de alunos. Além disso, todos os espaços educacionais devem ter bibliotecas, laboratórios de ciências e de informática, quadras poliesportivas cobertas e acesso à Internet de banda larga.

Isso não significa padronização excessiva ou engessamento, como alguns dizem. Pelo contrário! Caso o CAQi seja implementado na sua integralidade, pela primeira vez, qualquer escola pública brasileira terá condições de realizar a sua proposta pedagógica.

Conforme o que está estabelecido pelo PNE, o CAQi deve ser viabilizado com a participação financeira do Governo Federal. Isso deve ocorrer em nome da justiça federativa. No ano passado, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) produziu dados sobre o financiamento da educação, por requerimento do Senador Randolfe Rodrigues (PSOL-AP). Em 2012, a cada R$1,00 investidos em educação pública, a União colocou apenas R$0,18, cabendo aos Estados uma participação de R$0,40 e aos Municípios, R$0,42. Só que o Governo Federal é, de longe, o que mais arrecada mas – como visto! – o que menos colabora.

Em terceiro lugar, a Carta demonstra que a Amazônia determina desafios logísticos diferenciados. O CAQi, que por definição é nacional, deve ter seu valor suplementado por um fator amazônico.

Isso é necessário porque a região Norte tem alguns custos 10 vezes maiores do que os do restante do país. Por exemplo, apenas para investir e mobilizar uma obra no Estado do Amazonas (contratar e deslocar equipes, adquirir e transportar materiais e instrumentos de trabalho), é preciso investir R$ 500 mil, em média. Em São Paulo, esse custo é de R$ 50 a R$ 75 mil. Os desafios logísticos em uma região de floresta são imensos. Deslocar professores, inclusive, é outra questão complexa – para citar apenas duas.

Considerando a urgência, em especial devido aos graves indicadores sociais e educacionais da Amazônia, os secretários solicitam – de imediato! – repasses diferenciados nos programas federais já existentes. Sobretudo pelo fato de que o CAQi ainda não está implementado. Tampouco o fator amazônico complementar.

Sem tergiversar, a Carta da região Norte ensina que é preciso alcançar um patamar nacional de qualidade na educação, por meio da melhoria das condições de oferta do ensino, com equidade.

E, para tanto, o texto mostra que é imprescindível considerar os desafios específicos de cada canto do Brasil, como a Amazônia ou o semiárido nordestino. Esses locais necessitam de alguns repasses diferenciados, complementares aos valores nacionais de referência. Não será fácil, mas é o justo. Esse é o caminho para rever e implementar um pacto federativo consistente, basilar para um Sistema Nacional de Educação (SNE) efetivo.

Boaventura de Souza Santos ensina que “temos o direito de ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito de ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades.”

Ou seja, o primeiro passo deve ser o da igualdade, estabelecida pelo CAQi: todos cidadãos devem ter direito a um padrão nacional e inicial de qualidade na educação. Com isso, as diferenças deixarão de adubar as desigualdades. O segundo passo deve ser o dos fatores complementares, como o amazônico, o do semiárido, etc.

O que se quer, como fica evidente, é interromper o círculo vicioso atual, em que a regionalização permanece fornecendo água ao moinho das desigualdades brasileiras.


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