Blog do Daniel Cara

Arquivo : junho 2015

PNE completa um ano, mas precisa sair do papel
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Daniel Cara

O Plano Nacional de Educação completa hoje seu primeiro ano de vigência. A expectativa sobre o cumprimento de seus dispositivos permanece alta. Basicamente, o PNE pretende ser um primeiro e decisivo passo para que o Brasil resolva sua extensa dívida educacional. Mas é preciso encarar a realidade: mesmo se forem considerados todos os esforços empreendidos, nesse primeiro ano de vigência da Lei 13.005/2014, pouco foi feito. Em outras palavras, o que foi realizado até aqui é insuficiente.

O PNE deve ser compreendido como um patrimônio da sociedade brasileira. Não pertence a nenhum governo ou partido. Sua tramitação foi marcada por uma intensa interlocução entre sociedade civil, parlamentares e governantes. Afora a equivocada contabilização de parcerias público-privadas no investimento público em educação e a lamentável extração de instrumentos para o combate às discriminações de gênero, raça e etnia e orientação sexual nas escolas, quase tudo que está inscrito na Lei é fruto de consenso.

Diante de toda essa legitimidade, o cumprimento do PNE não deveria ser tão penoso. No entanto, não é o que acontece. Sancionado em 25 de junho do ano passado, sem qualquer cerimônia oficial, o plano ainda não recebeu a centralidade necessária.

Os primeiros meses de vigência do PNE coincidiram com o calendário eleitoral de 2014. Finalizadas as eleições, a preocupação da maior parte dos gestores públicos recaiu sobre a composição dos governos, em especial do governo federal.

O início do primeiro semestre de 2015 trouxe esperança. Na cerimônia de posse, Dilma Rousseff anunciou que o lema da sua segunda gestão seria “Brasil: pátria educadora”. No entanto, a própria presidenta passou meses sem sequer mencionar o PNE em seus discursos. Na sequência, o Ministro Roberto Mangabeira Unger lançou o documento “Pátria educadora: a qualificação do ensino básico como obra de construção nacional”, recebendo quase toda a atenção do debate educacional. O cumprimento do PNE foi secundarizado.

O tempo passou. Durante o primeiro ano de vigência do plano o país já contou com três ministros da educação: José Henrique Paim Fernandes, Cid Ferreira Gomes e Renato Janine Ribeiro. Até o momento, nem o essencial não foi feito. Não foi desencadeado sequer um processo de definição dos indicadores para avaliar o cumprimento dos dispositivos do PNE, tampouco foi divulgada uma linha de base oficial do plano – um relatório dedicado a oficializar o ponto de partida do Brasil no PNE, considerando cada uma das metas e suas estratégias.  Sem qualquer referência acordada – e ela precisa ser acordada! –, fica ainda mais evidente o descumprimento dos dispositivos.

O maior esforço empreendido até aqui recaiu sobre a elaboração dos planos estaduais, municipais e do Distrito Federal. Os planos subnacionais são fatores essenciais para o sucesso do PNE. Porém, outros dispositivos e obrigações nem sequer chegaram a ser discutidos, como a elevação da taxa de alfabetização da população com mais de 15 anos para 93,5% (meta 9) ou o estabelecimento da política nacional de formação dos profissionais da educação (meta 15) – em que pese o profícuo trabalho realizado pelo Conselho Nacional de Educação no tocante às diretrizes de formação de profissionais do magistério.

Hoje o Ministério da Educação deve anunciar a instalação de comissões e instâncias para tarefas determinadas no PNE. Para começar, três perguntas devem ser feitas: 1) Por que apenas agora? 2) Quem integrará as comissões? 3) Qual foi o processo de articulação para constituí-las? Espero que o atraso no estabelecimento desses coletivos não seja tributário daquela velha máxima da administração pública: se quer protelar algo sem resolvê-lo, crie um grupo de trabalho pouco antes do encerramento de um prazo.

O PNE foi construído a muitas mãos e para ter sucesso precisará dessas e de muitas outras. O conteúdo de sua implementação não pode ser definido em gabinetes, a portas fechadas, como tem acontecido até aqui. Até porque isso não funciona.

O Ministro Roberto Mangabeira Unger tem afirmado que a tradição do Estado brasileiro é se encastelar, não ouvir sugestões ou críticas, com o receio de alimentar oposições. Segundo ele, isso impede o fortalecimento democrático do país e das próprias políticas públicas. Concordo com Mangabeira, mas é isso que ocorre com o PNE: setores do Ministério da Educação trancafiaram o plano.

Em seu discurso de posse, o Ministro Renato Janine Ribeiro argumentou que o Brasil teve êxito em três etapas para construção de sua democracia: superação da ditadura, superação da inflação e promoção da inclusão social – segundo ele, esta última demanda ainda está inconclusa. Segundo Janine Ribeiro, a partir das jornadas de junho de 2013, ficou evidente uma quarta agenda democrática: a da qualidade dos serviços públicos.

Utilizando os termos do Ministro, é correto considerar que o PNE representa a articulação das duas últimas agendas na educação: promoção da inclusão social e busca pela qualidade da educação pública. Mas para vingar o plano depende de gestão democrática (em todas suas etapas) e prioridade orçamentária – o que tem sido impossibilitado pela incorreta política de ajuste fiscal, criticada recentemente pelo ex-presidente Lula e inúmeros economistas.

Dois manifestos recentes reiteram o que está escrito aqui. O primeiro é a Carta do XV Fórum da União dos Dirigentes Municipais da Educação (Undime). Aclamada por todos os secretários presentes, o texto seria até mais incisivo se não houvesse a cuidadosa mediação da diretoria da Undime.

O segundo documento é o posicionamento público da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, intitulado “Uma pátria educadora deve tirar o PNE do papel: primeiros prazos do plano estão sendo descumpridos”. O texto é assinado pelas 11 entidades e movimentos sociais que compõe o Comitê Diretivo da rede.

O que há de comum nos dois textos é a vontade de tornar efetivo o PNE. Eles manifestam o que é necessário ser dito ao Ministério da Educação. Mas, além disso, as duas cartas expressam também a vontade de seus signatários de participar da resolução dos problemas. Cabe agora ao MEC decidir se quer ou não abrir o debate em torno da principal lei aprovada nos últimos anos. Há apenas uma certeza: a comunidade educacional permanecerá cobrando o cumprimento do plano e exigindo participar ativamente de sua implementação. Governos passam, a sociedade fica e as leis precisam ser cumpridas, sem tergiversação. O que está em jogo são milhões de brasileiros fora da escola. E muitos outros milhões que estão dentro da escola, mas sem aprender. O PNE precisa sair do papel!


Querem levar nossas escolas para a Idade Média
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Daniel Cara

No dia 10 de junho foi a vez de uma comissão da Câmara dos Vereadores de São Paulo. Porém, em todo Brasil, alguns grupos retrógrados e seus parlamentares querem evitar que as escolas e os sistemas de ensino assumam a necessidade de combater as discriminações de raça, etnia, gênero e orientação sexual. Ao seguir essa toada, o Brasil está regredindo.

Em rodas de conversa sobre educação é comum ouvir que “as escolas brasileiras são do século XIX, nossos professores são do século XX e os alunos são do século XXI”. De tão repetida, a máxima perdeu força… Mas o pior é que algumas instâncias de casas parlamentares indicam que ela está obsoleta. Querem fazer com que nossas escolas regridam à Idade Média.

Nesta semana, devido à pressão de alguns supostos defensores da família, parlamentares da Comissão de Finanças e Orçamento da Câmara dos Vereadores de São Paulo extraíram do Projeto de Lei do Plano Municipal de Educação (PME) todos os mecanismos previstos de denúncia e combate às violências e discriminações de raça, etnia, gênero e religião. Processo semelhante ocorreu com o Plano Nacional de Educação, em Brasília, no Congresso Nacional.

É preciso (re)explicar o absurdo: a Comissão de Finanças e Orçamento da Casa deixou de lado questões relevantes do financiamento da educação, sua atribuição de mérito, para deliberar sobre temas de cunho moral… E fez isso sem qualquer preocupação pedagógica.

Quem conhece as escolas – seja como familiar, profissional ou estudante – sabe que os principais temas de bullying e outras formas de violência no ambiente escolar são exatamente essas discriminações extraídas do texto do PME, somadas aos preconceitos de classe, renda e local de moradia.

Desconsiderar esse fato, sob qualquer justificativa, é inaceitável. Deixar com que a rede pública paulistana deixe de planejar e ter instrumentos essenciais para o respeito à identidade e individualidade dos profissionais da educação, dos familiares, das alunas e dos alunos é um retrocesso grave e uma decisão altamente prejudicial ao ensino e à aprendizagem dos estudantes.

Sob qualquer prisma, toda escola deve promover princípios constitucionais básicos, como a dignidade da pessoa humana, a liberdade de ir e vir e a igualdade entre homens e mulheres.

No mínimo, deve ser consenso que todas e todos têm direito à educação. Infelizmente, é fato que nossas escolas já são espaços inóspitos para gays, lésbicas, transexuais, fiéis de religiões não-cristãs, não-brancos, membros de famílias mais desfavorecidas, nordestinos – o que, reitero, é inaceitável. Nos últimos anos, a cada dia que passa, tem ficado mais evidente a falsidade do mito da tolerância brasileira. E São Paulo, embora se ache diferente, não foge à regra nacional.

Como cidadãos, ao tomar conhecimento do que ocorreu na Câmara dos Vereadores paulistana, pais gays, mães lésbicas, crianças transexuais, educadores que professam o candomblé, por exemplo, têm a consciência de que foram desconsiderados. Em última análise, uma instância da Casa parlamentar da cidade não se preocupou com suas dificuldades cotidianas como membros de comunidade escolares, quase sempre, preconceituosas. Por decorrência, sua cidadania foi desrespeitada. E isso tem acontecido por todo o país.

Em reportagem publicada na Folha de S. Paulo, a jornalista Paula Sperb escreve que procurou, mas não encontrou qualquer menção à suposta “ideologia de gênero” no PME – motivo da ira dos grupos conservadores. Não tinha e não teria. O que existia era uma preocupação em combater os preconceitos mais presentes nas escolas de São Paulo – e também do Brasil. E só. Mas isso foi suprimido.

É preciso ficar claro: não é possível aprender sem paz. Também é impossível ensinar sem ser respeitado. E é inaceitável ver o Brasil dando, a cada dia, um passo para trás.


Na possível falta de diálogo entre a SAE e o MEC, deve prevalecer o PNE
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Daniel Cara

Em duas semanas, o Plano Nacional de Educação completará 1 ano de vigência. Vencerá o prazo para a realização de diversos dispositivos da Lei, mas pouco se avançou…

Não é raro por aqui, mas o debate educacional brasileiro se encontra, mais uma vez, em um lugar distante de tratar dos problemas da área.

Circulando pelo país e conversando com as pessoas é significativo o impacto do documento “Pátria educadora: a qualificação do ensino básico como obra de construção nacional”, redigido pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE), chefiada pelo Ministro Roberto Mangabeira Unger.

Por inúmeros motivos, o texto gerou contrariedade entre os membros da comunidade educacional. O documento foi capaz de organizar um discurso disperso e com o qual tenho discordância (já expressa aqui). Isso não é, necessariamente, um mérito, mas torna as posições mais claras no debate. Se isso não é algo positivo, pelo menos permite a franqueza nas discussões.

No entanto, distante de questões de conteúdo, uma das críticas mais recebidas pela iniciativa da SAE é o fato de que o Ministério da Educação não foi ouvido. Em menos de um mês, estive três vezes com o Ministro Mangabeira. Duas em eventos públicos, uma em seu escritório. Independentemente de sua visão, ele estuda a área e não foge de perguntas. Questionei diretamente esse ponto. Tanto ele como seus assessores reiteram que a encomenda é da presidenta Dilma Rousseff – ou seja, está acima de qualquer pasta. Além disso, insistem: todo o texto tinha sido debatido e acordado com Cid Gomes, ex-Ministro da Educação.

Por decorrência, é nesse momento que entra em jogo outro elemento. Por que o texto não foi debatido com o atual Ministro da Educação, Renato Janine Ribeiro? Mangabeira argumenta que não deu tempo, pois as agendas não coincidiram.

Bem abordada na coluna de Antonio Gois, publicada na última segunda-feira (8/junho) no diário “O Globo”, esse fato é certamente desconfortável. Dois ministros de um mesmo governo discutem, em perspectivas aparentemente distintas, o mesmo tema: a educação nacional. Segundo informações palacianas, isso pode ser resolvido em um encontro entre os dois, que ocorre nesta semana. Provavelmente, tenha ocorrido ontem (9/junho).

No entanto, por mais que seja necessário o entrosamento dentro da equipe ministerial, a falta de diálogo entre as duas pastas, ou seus titulares, não é algo que deveria tomar tanto a atenção pública. O problema maior é que em poucas semanas serão encerrados os prazos de alguns dispositivos fundamentais do Plano Nacional de Educação (PNE), que completará um ano de vigência.

O Brasil tem debatido o texto de Mangabeira Unger, tem criticado uma possível distância entre Janine e Mangabeira, mas dá pouca atenção ao fato de que o plano educacional verdadeiramente de Estado, debatido por quase quatro anos no Congresso Nacional e com intensa participação da sociedade civil, está em risco. E trata-se de uma Lei (Lei 13.005/2014). E essa tendência fica ainda mais evidente em um cenário inóspito de crise econômica e acirramento político.

Mangabeira diz que o PNE é uma lei arcabouço, Janine manifestou ao jornal Valor Econômico (2/junho) que a “Pátria Educadora” de Dilma é “a carne para o osso do PNE”. Contudo, quase nada é dito sobre as tarefas necessárias para o cumprimento do plano. E é isso o que deve verdadeiramente preocupar a sociedade brasileira e os governos federal, estaduais, distrital e municipais.

Desafios verdadeiramente urgentes

É praticamente certo que não seremos capazes de elevar a taxa de alfabetização da população com 15 anos ou mais para 93,5% até 2015, como determina a meta 9 do PNE. Teremos muita dificuldade para criar mais de 2 milhões de matrículas até junho de 2016, com o objetivo de garantir a obrigatoriedade do ensino para todos os brasileiros com idade entre 4 e 17 anos, como abordam as metas 1, 2 e 3 do plano e exige a Emenda à Constituição 59/2009.

O Governo Federal ainda patina em sua obrigação de implementar o mecanismo do Custo Aluno-Qualidade Inicial (CAQi), com prazo máximo até junho de 2016. E o pior: devido a assessores e conselheiros ruins, insiste em não convocar a sociedade civil e pesquisadores para a tarefa – há poucos dias implantou um grupo de trabalho interno, em discordância com deliberações da Conae-2014 (Conferência Nacional de Educação). O Brasil também não terá nas duas próximas semanas uma Lei de Responsabilidade Educacional, especialmente uma boa, que não seja cópia das experiências malsucedidas nos EUA e em outros países de matriz anglo-saxã.

Além disso tudo, poucos estados e municípios criarão planos de educação verdadeiramente participativos nas próximas semanas. Em parte porque se optou por substituir o estabelecimento de fóruns de educação por comissões burocráticas. O dramático é que os planos estaduais e municipais são centrais para o sucesso do PNE.

Também não se sabe ao certo qual será a política nacional de formação dos profissionais da educação, embora o intenso e competente trabalho liderado pelo Prof. Luiz Dourado acerca das “Diretrizes curriculares para a formação inicial e continuada dos profissionais do magistério da educação básica”, realizado no âmbito do Conselho Nacional de Educação. Isso colabora, em grande parte, para a resolução da meta 15 do PNE. Mas ela não deverá ser cumprida em sua integralidade. E o prazo dela é 24 de junho de 2015.

Essas são as questões fundamentais para a agenda educacional. E mais do que ter ansiedade pelas respostas, a comunidade educacional está disposta a buscar e propor soluções aos desafios determinados pelo PNE, em interlocução com os governos. A crítica é certamente necessária. Mas tanto quanto ela é preciso construir coletivamente alternativas.

Na semana em que o PNE completa um ano (21 a 27/junho), a rede da Campanha Nacional pelo Direito à Educação promoverá a Semana de Ação Mundial 2015, com o mote “Vamos tirar as metas do papel”. Ela trará um diálogo entre as metas internacionais da educação e as metas do PNE. Em termos educacionais, não há dúvida de que esta é a questão mais relevante para o país no momento. Também é um enorme desafio, que deve mobilizar a todos e todas.


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