Há eleitores no meio do caminho das disputas políticas atuais
Daniel Cara
O Brasil é um país de ideias únicas.
Entre 1994 e 1998, o modelo de gestão liderado por Fernando Henrique Cardoso (FHC) foi hegemônico.
Com a missão autoatribuída de “virar a página do varguismo”, FHC implementou sua versão de neoliberalismo, capaz de conviver com a ideia inaceitável de que milhões de brasileiros eram “inimpregáveis” – ou seja, não conseguiriam emprego. Como o Plano Real conseguiu domar a inflação – a um enorme custo social, diga-se de passagem –, o ex-presidente estabeleceu um legado vigoroso, capaz de lhe permitir duas vitórias eleitorais em primeiro turno (1994 e 1998), ambas contra Lula.
O declínio de FHC começa no início de seu segundo mandato, logo após contrariar suas promessas eleitorais e tomar medidas para a desvalorização do real. De sua queda, emergiu o lulismo.
A emergência do lulismo
Vitorioso a partir das eleições presidenciais de 2002 – quando ainda era um projeto –, o lulismo é, basicamente, um modelo de equilíbrio. Consiste em um jogo contínuo de negociação, no qual o Palácio do Planalto exerce a função de balança, buscando melhorar as condições de vida da população, porém sem ferir os interesses do capital.
Nesse jogo, de um lado estão as elites econômicas e políticas do país e, do outro, os sindicatos e movimentos sociais. Para dar certo, nenhum desses polos de poder pode ter a capacidade de impor sua vontade. Quando necessário, o governo deve ser capaz de, em alguma medida, atender as demandas ora de um lado, ora do outro. É um sistema capaz de promover avanços sociais inegáveis, mas incapaz de implementar as reformas necessárias.
Estruturalmente, o lulismo não rompeu com o modelo administrativo de FHC. Em muitas áreas, como a educação, se mantiveram as bases do gerencialismo. Porém, seu inegável mérito foi não aceitar ideias elitistas e fatalistas, como a dos “inimpregáveis”. Como resultado, como nunca antes na história do Brasil, oportunidades foram democratizadas – e esta frase está tão batida quanto é verdadeira…
Dito de forma mais clara, a partir do governo Lula, uma série de políticas públicas foram aperfeiçoadas ou criadas. E é evidente que elas melhoraram as condições de vida das camadas C, D e E.
Ao saber aproveitar o cenário internacional, o governo Lula tomou medidas econômicas necessárias para melhorar os salários e facilitar o consumo. E o Brasil provou que FHC e seus colegas estavam errados: com um mínimo de comprometimento político, ninguém é “inimpregável”; o país praticamente alcançou o pleno emprego. Em 2010, as linhas de montagem produziram mais – especialmente a automotiva –, o comércio vendeu mais, a população comprou mais. Em algum nível, todos pareciam estar ganhando.
A expansão das oportunidades de escolarização
Na educação, o Prouni e o Fies subsidiaram e financiaram a expansão de vagas no ensino superior, mesmo sendo ofertadas matrículas de péssima qualidade. Nunca as faculdades particulares se tornaram tão acessíveis e populares, porém sem a devida preocupação pedagógica.
Por outro lado, foram meritórios a expansão e o fortalecimento do ensino superior público, mantendo no fio da navalha o jogo de equilíbrio: atender, da melhor forma possível, os interesses dos empresários da educação, sem deixar de lado a demanda dos sindicatos e movimentos sociais, que reivindicavam (e reivindicam!) a expansão pública.
A sensação de que quase todos estavam ganhando com o lulismo foi duradora, sendo capaz de dar ao PT duas vitórias eleitorais consistentes: 2006 e 2010 – em 2002 o modelo ainda não estava estabelecido.
Foi entre 2006 e 2012 que o lulismo ascendeu ao patamar de pensamento único – o que nunca é bom. E a oposição ficou relegada a um papel constrangedor de tão pequeno.
Porém, as jornadas de junho de 2013 prenunciaram o esgotamento da lógica lulista. Novos personagens tomaram as ruas, que deixaram de ser uma exclusividade dos sindicatos e movimentos sociais identificados com os partidos da centro-esquerda brasileira. Concomitantemente, cresceu o desgaste de Dilma Rousseff perante o empresariado e as elites políticas, devido à sua indisposição em manter o jogo de equilíbrio. Ora a presidenta agiu por coragem – como no caso da redução da taxa de juros –, ora por espontaneísmo. Especialmente, a falta de traquejo com o Congresso Nacional corroeu o modelo. Como resultado, as eleições de 2014 foram apertadas, ainda que a maioria do eleitorado tenha preferido manter no poder um governo que prometia preservar as políticas sociais e, principalmente, o emprego e a renda do trabalhador.
A queda do lulismo
Foram a trajetória e o carisma de Lula que cimentaram o modelo de governo vigente entre 2003 e 2014. Antes de ter sua imagem abalada pelo fracasso em que se encontra o segundo mandato de Dilma Rousseff, de quem foi o fiador eleitoral, o ex-presidente era admirado por quase todo o empresariado e tinha a fidelidade da maior parte das camadas C, D e E. Embora não fosse uma referência para boa parte dos jovens que participaram das jornadas de junho, Lula ainda é o principal político do país, com forte liderança sobre muitos sindicatos e movimentos sociais. Porém, é inegável que o ex-presidente perdeu aderência discursiva e poder de aglutinação política.
Passado o tempo, ficou ainda mais evidente que o lulismo depende de seu criador em contínua posição de protagonismo. No entanto, isso não é possível com Lula fora do Palácio do Planalto. Não é à toa que boa parte do petismo, desde 2011, considera os dois mandatos de Dilma Rousseff um interregno (angustiante!) para uma nova e redentora ascensão de Lula em 2018 – sem qualquer reflexão sobre os efeitos do personalismo na política brasileira e na estrutura partidária do PT.
Mas isso se explica. Não apenas a atual presidenta, mas nenhum outro político brasileiro é capaz de reunir as mesmas credenciais e repetir a mesma narrativa do ex-presidente. Sua biografia é única. Ademais, ninguém é capaz de sustentar a negociação com os dois polos de poder do jogo lulista, sem deixar um se sobrepor ao outro.
No entanto, hoje há dúvida se o lulismo é viável em uma conjuntura política e econômica desfavorável, como a atual. Nas crises é quase impossível manter o equilíbrio do jogo. No único mercado válido para as alianças políticas, o mercado futuro, a moeda eleitoral do ex-presidente sofre forte desvalorização: os aliados fisiológicos, especialmente setores do PMDB, já duvidam da capacidade do ex-metalúrgico em permanecer imbatível no voto. Porém, não há nenhuma força política eleitoralmente hegemônica. Por isso, as eleições municipais de 2016 serão as mais relevantes das últimas décadas, com a pauta nacional se sobrepondo às questões locais – tendência inversa à verificada nos últimos anos.
Concomitantemente, alguns setores empresariais também passaram a considerar o modelo lulista desvantajoso, pois as políticas que resultaram no aumento da renda dos trabalhadores pressionaram as altíssimas taxas de lucro das empresas brasileiras. Em síntese, para eles, deixou de ser um jogo de ganha-ganha.
Ou seja, mesmo Lula, com todo seu carisma e biografia, teria dificuldade de governar hoje sob as regras do modelo que ele próprio cunhou. Os primeiros resultados colhidos pela reforma ministerial do governo Dilma Rousseff, concluída em 2 de outubro de 2015 e liderada pelo ex-presidente, reforçam essa tese. Muitos atores econômicos e políticos não vão mais se submeter ao jogo de equilíbrio lulista. O clima da política brasileira, após os efeitos do (des)ajuste econômico liderado por Joaquim Levy e a investigação da operação Lava-Jato, é de todos contra a hegemonia do PT. Lula, mesmo permanecendo acima de seu partido perante os atores políticos e econômicos, não está incólume a esse enfrentamento. Pelo contrário. É o maior alvo.
Um “novo” pensamento único?
Em momentos de crise, como agora, é repetida à exaustão a mais citada passagem do livro “O dezoito de brumário de Luís Bonaparte”. Ali Marx sentencia: “a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”. No Brasil, ela tende a se repetir em duplicidade e unicidade: é ao mesmo tempo tragédia e farsa.
Durante as eleições de 2014, Dilma Rousseff se comprometeu a não implementar medidas ortodoxas e recessivas de ajuste fiscal. Segundo o script redigido por seu marketing eleitoral, seu coração valente jamais iria prejudicar os mais pobres, beneficiados com as oportunidades descortinadas pelas políticas públicas do lulismo.
Contudo, quando assumiu seu segundo mandato, a presidenta agiu em contrário das promessas da candidata. A história se repetiu, assim como a farsa. Em 1998, FHC prometera não desvalorizar o real frente ao dólar. Tal como Dilma agora, o ex-presidente tucano também não cumpriu com sua palavra. E o descumprimento das promessas eleitorais sempre geram efeitos mais dramáticos para a população com menor renda: rapidamente cresce o desemprego e fica ainda mais difícil o acesso a serviços públicos.
Como não há vácuo em política, um (quase) “novo” pensamento único (re)emerge no bojo da crise do modelo lulista. Porém, envolto em desfaçatez. Seu objetivo é destruir o lulismo; sua estratégia é a redução do Estado. A desculpa publicizada é o equilíbrio das contas públicas, que é necessário, mas pode ser feito de inúmeras formas. No entanto, a escolha dos reacionários tem sido pela absurda redução da cidadania. Sem qualquer noção de democracia e republicanismo, seus vocalizadores chegam a atacar até as conquistas da Constituição Federal de 1988, inclusive aqueles que sequer se materializaram.
Um novo (e tolo) mantra tem sido repetido no debate público brasileiro, inclusive em editoriais de grandes jornais: há Estado demais para PIB de menos. Não importa se isso é verdade ou não. Como também é indiferente que os direitos sociais não estejam consagrados. Além de uma certa paixão recorrente pela tragédia, o Brasil é um país excessivamente tolerante com as desigualdades. Por exemplo, muitos não se constrangem com o fato de que a maioria das crianças de 0 a 3 anos não tem acesso à creche; muito menos que estamos distantes de universalizar a pré-escola, o ensino médio e a alfabetização e escolarização básica dos jovens e adultos.
Um outro mantra é repetido pelos mal-intencionados: há tributos demais e PIB de menos. Afora o erro técnico da assertiva, não importa aos seus vocalizadores que, proporcionalmente, quem mais paga a conta são os mais pobres, justamente aqueles que têm menos acesso aos serviços públicos. O problema não é a carga tributária, mas sobre quem ela incide. Para o Brasil ser um país decente, a carga tributária pode e precisa ser maior, porém mais justa.
O pensamento único que tenta emergir é uma versão raivosa da lógica política que cunhou termos inaceitáveis como “inimpregáveis”. E para comunicar melhor seus desatinos, os reacionários têm comparado a questão pública com a gestão do orçamento familiar. A mensagem é básica: tanto em casa como no governo, não se pode gastar mais do que se tem. É uma comparação infeliz em todos os aspectos, a gestão de uma esfera complexa como o Estado é incomparável à vida doméstica. As regras da macroeconomia são outras.
Porém, se é para seguir na metáfora, caso o reacionarismo se imponha, o Brasil será uma casa com uma mãe autoritária, que escolhe quais filhos vão à escola, quais vão ao médico e quais irão comer. Não é um lar justo, tampouco feliz. Ninguém suporta viver em uma casa assim, a não ser os privilegiados das injustiças.
É preciso desconstruir esse “novo” pensamento único, antes que ele se estabeleça de vez.
Por sorte, há eleitores no meio do caminho
Porém, há um bom limite para o reacionarismo: há eleitores no meio do caminho. A população resistirá, mais cedo ou mais tarde, em dar seu voto a quem pretende reduzir seus direitos e tomar medidas que geram desemprego.
Nas eleições municipais de 2016, caberá ao eleitor decidir se irá votar em candidatos que apoiam ou não um ajuste fiscal míope e recessivo, que amplia o desemprego e coíbe a expansão da educação infantil, por exemplo. Os cortes na educação minaram programas federais importantes, como o Proinfância – dedicado à construção de equipamentos de creches e pré-escolas em parceria da União com os municípios.
Já não é fácil para os políticos de partidos da base do governo justificarem o ajuste fiscal. Até mesmo porque ele está errado – quem está pagando a conta, mais uma vez, são os mais pobres. Tampouco será uma solução para o eleitor a nova versão do velho pensamento único dos anos 1990, defendido pela oposição de direita e veiculado de forma elogiosa na grande imprensa. A maioria do eleitorado já não aceita ideias elitistas como a dos inimpregáveis.
Há espaço para a emergência de um novo projeto, pautado no bem-estar social e no reequilíbrio da economia. Um projeto capaz de enfrentar a agenda de reformas estruturais impossibilitadas pelo jogo de equilíbrio lulista. Ou seja, um projeto que o supere.
O jogo está aberto. E há muitos eleitores no meio do caminho. A maioria decidirá se o Brasil deve caminhar para frente ou andar para trás em termos de justiça social. Nunca é ocioso lembrar: as jornadas de junho de 2013 exigiram transporte, educação, saúde e política cultural de qualidade. Ali emergiram novas demandas e elas impõem a necessidade de enfrentar as gritantes desigualdades nacionais. Até o momento, nenhum partido político conseguiu incorporar e propor alternativas para a materialização dessa pauta. Esse é o desafio.